sexta-feira, abril 27, 2018

#A Caneta - (conto)


Quando o telefone tocou na Central, o agente Simões, Sargento de patente, homem com mais de vinte anos de serviço à Guarda, não fazia ideia do que aquele dia lhe reservava.
- Posto da Guarda, bom dia! – começou por dizer, num atendimento rotineiro, o agente Simões.
- Bom dia, Sargento! – cumprimentou a voz do outro lado da linha – Quem lhe está a ligar é o barbeiro Américo. – informou – Quero denunciar um homicídio. – avançou – Matei um cliente. Fez uma pausa – Estou na barbearia à vossa espera.

Costumes era uma pequena vila com pouco mais de quatro mel habitantes, pacata, sem historial de criminalidade violenta e pouca referência de criminalidade leva. De tal modo assim era, que o pequeno posto da Guarda era assegurado pelos dois únicos militares que desenvolviam a autoridade, o Sargento Simões e o Cabo Albertino, num horário entre as 8 horas e as 17 horas; fora de horas o contacto com os homens da lei, o contacto era efectuado através de um telemóvel que os acompanhava, à vez.

Entre outras personalidades, o barbeiro Américo era um dos elementos da vila que todos conheciam e por quem tanto apresso nutriam. Era de senso comum o seu reconhecimento social como alguém altruísta, de carácter ponderado, bom conversador. Viúvo, perdera a mulher ainda jovem – com pouco mais de 30 anos de idade – e não lhe fora conhecida mais nenhuma companheira de vida. Como não havia tido filhos, após o falecimento do seu irmão e cunhada num acidente de viação, ficou tutor do seu sobrinho único, um adolescente de 15 anos de idade, revoltado com a partida prematura dos seus progenitores, e a quem Américo prometera proteger como se seu filho biológico se tratasse.

- Está tudo bem, meu Sargento? – indagou o Cabo, constatando o semblante do seu superior.
- Mais ou menos… - disse, enquanto se levantava e agarrava no seu boné. - Era o barbeiro Américo ao telefone a confessar um homicídio.
- Um homicídio? – preplexisou-se o Cabo Albertino – O barbeiro Américo?!
-- Diz que tem o corpo lá na barbearia e que está à nossa espera.

Os dois agentes abandonaram o posto – fechando a porta nas costas – e dirigiram-se ao jipe Land Rover de 1987 que se encontrava estacionado num terreno contíguo ao edifício. Debaixo do braço, o Sargento prendia uma pequena pasta com algumas folhas e uma caneta. O Cabo Albertino sentou-se ao volante e, deixando uma nuvem de fumo para trás, seguiram em direcção à barbearia.

Toc! Toc! Toc!

Quando escutou baterem à porta, o barbeiro Américo percebeu, pela silhueta que se desenhava na cortina corrida, que se tratava dos agentes da Guarda. Dirigiu-se à porta, abrindo-a, permitindo que entrassem, fechando-a de seguida.

- Está ali, o homem! – apontou, com o dedo apontador da mão direita, na direcção de um corpo que jazia no chão, repleto de sangue, junto à cadeira de serviço.
O Sargento aproximou-se e, agachando-se, tentou perceber se ainda haveria pulsação.
- É, está morto! – concluiu, acrescentando – Cabo, vamos precisar aqui dos bombeiros, da Policia Criminal e do Delegado de Saúde. – olhou o relógio e apontou as horas no seu bloco – Trate disso, por favor!
- Sim, senhor! – respondeu o Cabo, dando inicio a um conjunto de telefonemas.
- Quem é a vitima? – indagou o Sargento o barbeiro Américo.
- Um homem que não é da vila.
- Sim, esta cara não conheço. – disse o Guarda – Quer contar-me o que aconteceu?
O barbeiro olhou o Sargento, olhou o corpo estendido no chão e voltou a olhar na direcção do agente da autoridade, respondendo – Não me parece necessário. Matei-o, confesso o crime, assumo o homicídio.
- Seria importante para a investigação sabermos a razão de tal acto… - fez uma pausa - … aceleraria a conclusão do mesmo.
- Entedo!
- Não me quer, então, contar o que se passou?
- Este homem apareceu aqui e quando me preparava para lhe colocar a espuma para o corte da barba, começou a ofender-me. Cortei-lhe a garganta com a navalha de fazer a barba. – olhou a navalha, que se encontrava sobre a banca, ensanguentada – Está ali, a arma do crime. – fez um movimento de cabeça na direcção do artefacto.

Meia-hora após a chegada ao local do crime, o Sargento Simões deu ordem de prisão ao barbeiro Américo, poucos minutos após o surgimento da Policia Criminal, que viera analisar a cena do crime e recolher indícios.

Chegado ao posto e após ter sido dactilografada a declaração de culpa do barbeiro Américo, foi-lhe entregue o documento para que o lese e assinasse. Assim o fez. Após ler o escrito, esticou o braço direito e, pegando na caneta que se encontrava sobre a mesa, firmou a declaração de culpa.

Pouco mais de um mês após o homicídio, chegou ao Ministério Público o resultado da autópsia. Confirmara-se a morte por degolamento da vítima, confirmava-se a navalha da barba como objecto utilizado para desferir o corte fatal, no entanto havia algo que não coincidia com o relatório policial; segundo o relatório da Policia Criminal, o suspeito era dextro e na reconstituição do crime, ele afirmara que segurara a vitima pelos cabelos com a mão esquerda e que havia cortado a garganta num movimento da esquerda para a direita. Já o relatório pericial da autópsia indicava que o corte tinha sido executado da direita para a esquerda. Ou seja, o assassino era canhoto.

Após algumas diligências, o barbeiro Américo foi libertado. Devido a problemas de saúde, foi sujeito a internamento hospitalar. Uma pneumonia acabara por tirar-lhe a vida.

Não tendo mais família que não o seu sobrinho, este tornara-se o único herdeiro de todos os bens e poupanças de Américo. O rapaz, agora homem de 22 anos de idade, fora chamado ao posto da Guarda para assinar um documento relativo à posse administrativa do negócio da barbearia, o Sargento Simões apresentou o documento sobre a mesa, assim como uma caneta. O herdeiro, sobrinho de Américo, pegou a caneta com a mão esquerda e assinou o documento.  

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