domingo, outubro 30, 2016
# A dor que não se diz
Nunca ninguém está preparado para a notícia que, tantas vezes já adivinha qual é o seu conteúdo. Ninguém é preparado emocionalmente para o facto de na sua vida surgir, de um momento para o outro - porque estas coisas não vão surgindo, estão lá - um momento em que o mundo pára, o relógio suspende o seu tic-tac, o chão escapa debaixo dos pés e, logo à memória surge, que ainda temos tanto para fazer.
- Tenha calma, vamos de tudo fazer para resolver o problema. - dizem - A medicina está tão avançada que já são muitos os casos de sucesso no tratamento. - acrescentam, não especificando que são apenas 2%, os casos de sucesso.
E logo começa ali, naquela sala de consultas, a corrida contra o tempo, contra os ponteiros do relógio que, de imediato, após terem parado para que o seu ténue e tranquilo barulho não incomodasse os nossos ouvidos na recepção de tão nubelosa informação, dão inicio a uma batida forte, barulhenta, cada vez mais rápida - é isso que nos parece - e sempre de olho em nós - ou nós nele.
Chega o dia do internamento e, resignados e pouco crentes, sabemos, apesar de não deixarem transparecer esse sentimento, lá se vai caminhando para um momento sem data de termo, sem certezas, sem garantias, mas com uma vontade de lutar, lutar, lutar, contra o "bicho" que sem pedir autorização se apodera e alimenta de um corpo que não é seu.
E os dias passam a parecer segundos, e as semanas minutos e os meses horas. São tic-tac's sem lamentos, choros, mas com muita batalha emocional em olhares perdidos em preocupações, num túnel sem fim, num abismo sem fundo, num horizonte distante.
E quando queremos dar força a quem dela necessita, somos nós que somos confortados por quem por nós deve ser, numa agonia absorvida pela nossa dor, pela nossa amargura, pela nossa revolta.
E olhamos... olhamos quem luta naquela sala de tubos, naquela sala de esperança, naquela sala de silêncio. E choramos em silêncio quando nos passam a mão trémula, cansada, dorida, pela face e nos sorriem com uma tremenda dificuldade e nos dizem - Está tudo bem. - e nós sabemos que não está.
E gritamos num silêncio perdido no interior da nossa alma, nas nossas veias, na nossa mente e tentamos encontrar respostas que não temos, que não têm, que não nos querem dar...ou não sabem!
E naquele fim de tarde, quando me desloquei ao hospital para a ver - para te ver - fiz o que sempre fazia, todos os dias, em todas as visitas - ia ao bar, lá abaixo, comprar uma garrafa de 1,5 l de água, porque era só isso que me pedias. Dizias-me que os tratamentos te davam muita sede e que a água do hospital não era boa.
E naquele fim de tarde, quando cheguei ao hospital, lá fui buscar a tua garrafa de água; e quando comecei a subir as escadas, senti no peito um raio que me furou; senti.me atingido por uma força que não entendi, uma faca que me perfurou as costas e me deixou sem ar.
Uma tontura atingiu-me! Logo ali percebi que algo se passava e corri. Corri o mais que pude, o mais que consegui, escadas acima, com a garrafa, a tua garrafa, sempre nas mãos. As lágrimas queriam libertar-se, mas não conseguiam.
Corri, corri, corri e quando cheguei ao segundo piso agarraram-me, seguraram-me e não me deixaram vê-la, não me deixaram vê-la...
- Já é tarde, ela já partiu! - disseram-me.
Não era possível que tivesse partido sem se despedir de mim; não de mim. Poderia não despedir-se de ninguém, mas de mim? Não entendi... mas hoje percebo que não me quis fazer sofrer; nunca chorou, mesmo quando a dor era enorme...e se era enorme! Nunca se lamentou, mesmo quando o poderia ter feito e tinha esse direito... tantas vezes percebi como era enorme a sua dor; mas nunca se queixou, nunca se lamentou, sempre teve uma palavra de motivação e coragem; sempre!
Hoje percebo que aquela força que me atravessou o corpo, aquele raio que me atingiu e em mim se fundiu, foi o teu abraço...o teu abraço de despedida.
Estarás sempre comigo...Mãe!
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