Hoje quero falar-vos do meu avô António. Já morreu, o senhor! Sim, o senhor, porque era isso que ele era, um senhor, apesar de nascido e criado na aldeia, homem de 4ª classe de instrução - antiga - o avô António era um conhecedor da vida e um leitor exímio.
Todos os anos, sem saltar algum, ia à Festa do Avante, em excursão. O meu avô era militante do Partido Comunista Português e falava do camarada Cunhal com muito orgulho na voz.
Durante muitos e bons anos, o meu avô António foi marceneiro de profissão e, segundo dizem, um marceneiro de mão cheia. Foi barbeiro, também, mas esta arte, segundo me recordo escutar, não era de profissão, mas sim de desenrasca. Mas do que me recordo mesmo, é do meu avô António explorar um café. E de no café se jogarem umas cartadas e damas e dominó. Numa sala contígua ao café, tal como acontece hoje em muitos cafés, haviam uns matraquilhos e um jogo de malha.
Quando era miúdo, costumava ir visitar o meu avô. Íamos ao domingo, de quinze em quinze dias ou de três em três semanas. Almoçávamos e passávamos lá o domingo, regressando a casa ao final do dia. Era naquela época em que ainda apenas existiam dois canais de televisão e a cor não fazia parte do ecrã dos aparelhos. Íamos visitá-lo e ele estragávamo-nos com mimos. Ou era a pastilha "Pirata" ou com um "Epá ou Perna-de-Pau" ou um chocolate "Regina". Mas não era apenas um, mas sim um e depois mais outro.
O meu avô António era um benfiquista dos sete costados. Nunca conheci ninguém que gostasse tanto do Benfica como ele. Sim, porque ele amava aquele clube, mas não era doente ao ponto de entrar em conflito com quem quer que fosse por razões de algum jogo ou lance. Ele amava o Benfica, e pronto.
Quando dava o relato na radio, lá estava ele de ouvido colado à telefonia. Apesar de dizer que não, o avô António, já com alguma idade, não escutava muito bem. Não gritava golo nem nem apresentava comentários; mas nos seus olhos lia-se a alegria do seu benfiquismo. Na sala de jantar, sobre a mesa, na parede, tinha um poster do Benfica, encaixilhado. No café, quando o jogo passava na televisão, não havia cliente que o arrancasse de junto do aparelho, durante a transmissão. Enquanto a bola estivesse a correr, não havia cafés, cervejas, gasosas, tremoços ou amendoins. por mais que o chamassem só para o verem a fazer-se de surdo - ele não atendia. Afinal, estava a dar o Benfica na televisão.
Os anos foram passando e passei a ir visitar o avô António com menos frequência - coisas da vida que não se explicam, mas que infelizmente vão acontecendo e que mais tarde nos levam ao arrependimento - mas com alguma responsabilidade. E sempre que lá o ia visitar, a ele e à avó Licínia, a senhora preparava-me sempre o meu manjar predileto; uma montanha do Evareste de batatas fritas, acompanhado por carne estufada - que só ela sabia fazer - e dois ovos estrelados. E acreditem que era um Evareste de comida. E acreditem que eu comia a pratada. Mas mesmo assim, depois de limpar um disco daqueles, o meu avô António insistia para que eu comesse mais e mais. E à minha frase - Não, avô, estou cheio. - ele logo me respondia - Nem para comer prestas.
Sinto falta do meu avô António. Sinto falta da lágrima silenciosa no canto do seu olho quando me via, de o ver a andar de bicicleta com as calças presas com uma mola de roupa, para não as sujar na corrente, de o ver à pesca, de Kentucky na boca, a acender uns nos outros - enquanto fumava - de o ouvir a chamar pelas netas todas, do seu abraço tão carinhoso.
Dizia que eu não servia nem para comer. Nunca percebi o que queria dizer ele com aquela frase, mas certamente que ele sabia que, pelo menos, para ter um ou outro devaneio, eu sirvo. E certamente saberá que, quando morreu, eu não estava no funeral, porque me esconderam a sua morte, depois de uma chantagem desumana.
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