Fechou os olhos e reviveu o momento em que
o Presidente da Câmara londrino lhe colocara as insígnias ao peito e lhe
apertara a mão, em cumprimento, felicitando-o.
- Bem vindo à 35ª Companhia do Corpo
de Bombeiros londrino. A comunidade conta com a sua bravura, dedicação e
empenho, a comunidade da cidade de Londres está consigo.
Sentiu-se nostálgico, distante,
orgulhoso por ter conseguido alcançar o seu objectivo de criança e se ter
tornado bombeiro. Recordou-se, com saudade, da visita que havia efectuado à 35
ª Companhia, quando aos oito anos de idade a professora o tinha levado, e à
turma, a conhecer os bravos soldados da paz. Nesse dia dissera para si mesmo –
Quando for grande quero ser bombeiro da 35ª Companhia. E assim foi.
Por vezes passava diante do quartel
e ali permanecia longos minutos a observar os elementos do corpo de bombeiros,
de volta dos carros, a lavá-los ou simplesmente a realizarem outra qualquer
tarefa. Outras vezes, quando escutava uma sirene, procurava certificar-se se a
viatura pertencia à 35ª Companhia; e quando era, acenava-lhes e dizia para com
os seus botões – Um dia vou ser eu a conduzi-lo.
Aos quatorze anos de idade
inscreveu-se na classe infantil da 35ª Companhia. Tratava-se de um grupo de
jovens que a 35ª Companhia organizava, com o intuito primeiro de, não apenas
transmitir-lhes princípios de vida e socorro, como também prestar um apoio
social a crianças originárias de famílias carenciadas ou simplesmente com algum
elemento no agregado familiar com problemas de toxicodependência ou alcoolismo.
Ali, no grupo da 35ª Companhia, recebiam formação na área do socorrismo básico
e princípios de vida social e integração.
Quando a meio da sua adolescência lá
entrou, naquela visita de estudo, Andrews não pertencia a nenhum grupo de
risco, mas a sua paixão emergente pelo corpo de bombeiros e em especial pela
35ª Companhia, levara-o a pedir a seu pai que o inscrevesse nas actividades.
Os anos foram passando e, aos 19
anos de idade, já frequentando a Faculdade de Medicina, integrou um grupo de
elementos à formação do curso de bombeiros. Com 21 anos de idade já
completados, terminou o curso de bombeiro ao mesmo tempo que terminava o 4º ano
de medicina.
Com nota final de 19 valores, a
melhor do seu curso de bombeiro, Andrews teve a oportunidade de escolher a
Companhia na qual desejava realizar o seu estágio; escolheu a 35ª Companhia.
Sorriu ao relembrar-se da forma acolhedora com que o receberam;
- Boa tarde! – disse Andrews, ao se
apresentar no primeiro dia de estágio.
- Boa tarde! – respondeu-lhe o
Comandante Peter – és o estagiário?
- Sim, senhor!
- Sou o Comandante Stoks, Peter
Stokes. Podes vir comigo, vou apresentar-te aos restantes elementos da 35ª
Companhia e indicar-te em que equipa foste integrado.
- Obrigado, meu comandante. –
respondeu Andrews, seguindo atrás do homem do comando, um homem de físico
robusto, alto e presença no tom de voz.
Andrews foi integrado na equipa 3;
tratava-se de uma equipa de cinco elementos – com ele passariam a ser seis
elementos – cuja especialidade eram o resgate e salvamento em zonas de perigo
nível 4. O perigo Nível 4, como estava classificado nos sistemas de socorro,
era um perigo equivalente ao nível vermelho na Europa Ocidental. Tratava-se de
socorro e resgate em locais cujo risco de desmoronamento era elevado e onde
eram utilizados equipamentos específicos de elevado grau de complexidade. Os
elementos da equipa 3 eram, igualmente, chamados a intervirem sempre que a zona
da acção se encontrava em elevado estado de destruição, como por exemplo locais
atingidos por furacões, trovoadas ou de outro nível de catástrofe. Andrews fora
integrado naquela equipa devido ao facto de estar em fase final do seu curso de
medicina e possuir, igualmente, um bom nível de experiência na sua área. Foi também critério o facto de ter uma boa
constituição atlética e formação de excelência, associada a bastante
experiência em escalada e montanhismo.
Naquele dia em que iniciou o seu estágio
como bombeiro e lhe foi indicado que iria integrar a equipa 3, aceitou de
imediato. Afinal, era a concretização de um sonho que alimentara ao longo dos
anos e que agora se tornara realidade. – E não é todos os dias que conseguimos
alcabçar os sonhos de criança – pensou. Sorriu.
No dia da entrega das insígnias, lá
estava ele, de farda de gala como indumentária, bem engomada, num prumo
perfeito.
Estavam quatro linhas de novos
bombeiros defronte do palanque composto por um oratório e diversas cadeiras
alinhadas em fundo. Por detrás dos novos bombeiros, um conjunto de cadeiras
ornamentava o espaço e dava apoio aos convidados dos formandos. Andrews era o
quarto elemento da primeira fila.
Encontrava-se em posição de “sentido”
com as mãos e os braços alinhados, em perfeição, com o tronco e os membros
inferiores; o queixo mantinha-se ligeiramente erguido e o olhar fixo num
profundo infinito. Sentia-se pleno de orgulho. Sabia que ali, alguns metros
atrás de si, estavam seus pais. Sabia que um dos sentimentos que nutriam e
completavam, era o mesmo orgulho que o invadia a si mesmo.
Sorriu.
Sentiu uma dor aguda na zona
esquerda das costelas.
- Bem vindo à 35ª Companhia do Corpo
de Bombeiros londrino. A comunidade conta com a sua bravura, dedicação e
empenho, a comunidade da cidade de Londres está consigo. – foram as palavras do
Presidente londrino no momento em que lhe colocara as insígnias afixadas na
lapela esquerda sobre o peito e lhe apertava a mão, felicitando-o.
De imediato nas suas costas uma
explosão de aplausos soou, deixando Andrews num estado de êxtase e orgulho
elevado. Estava com 23 anos de idade e na eminência de completar dois como
elemento activo da equipa 3 da 35ª Companhia. Dois anos de uma espantosa plenitude ao serviço da comunidade de Londres, com mais de duzentos serviços
efectuados, uns com grau de exigência mais elevado, outros menos, mas todos com
a mesma aplicação e determinação operacional.
Recordou-se, enquanto tentava
movimentar-se - ainda que mais uma vez tivesse percebido que não o conseguia
fazer – da chamada que receberam, certa vez, de uma senhora que solicitara
ajuda para retirar o seu pequeno felino que estava retido no cimo de uma árvore
e não conseguia descer. Logo de imediato a equipa 3 foi posta no encalço da
senhora e do seu gato. Fora das primeiras missões em que participara; ainda
tinha presente o semblante de angustia de uma senhora octogenária que, dando
pequenos passos num movimento irrequieto, a espaço apoiava a mão esquerda no
tronco da árvore e, olhando para cima, ía dialogando com o bichano que não cessava
uma miadela de susto. Foi Andrews que subiu a escada de três metros,
extensível, que os elementos que o acompanhavam encostaram ao longo do tronco
da árvore. Quando chegou perto do animal, agarrou-o, estranhando que este não
tivesse encetado uma fuga. Chegou-o a si, ao que o animal se aninhou de
imediato junto ao seu pescoço. Lembrou-se, igualmente, quando a sua equipa saiu
em socorro de um acidente na ponte de Waterloo – que atravessa o Tamisa entre
City e Southwark – que após ter embatido noutra viatura, se precipitou para o
gradeamento e ficou suspenso com um casal de jovens no interior, encarcerados.
Estranhou o facto de todas as suas
recordações lhe estarem a surgir em cascata diante dos seus olhos. É verdade
que não se encontrava na situação mais favorável, mas já estivera outras vezes
noutras situações, também elas menos favoráveis, mas não tanto como esta, é
verdade. –estarei a morrer e ainda não
dei conta? – pensou – normalmente
estas situações, dizem, acontecem a quem se encontra numa situação de morte
iminente. – reflectiu – foi o que
sempre escutei dizerem.
Tentou concentrar-se no seu momento,
naquele momento. Sentiu dificuldades. Tentou recordar-se daquele dia para
conseguir perceber onde estava, que escuridão era aquela que o afrontava.
- Estarei ainda a dormir e a sonhar?
– questionou-se – Que raio. Se estou a dormir, este é um sonho muito estranho.
Ao longo de algum tempo, tempo que
não teve sapiência para contabilizar, Andrews tentou perceber que situação era
aquela em que se encontrava e que tantas dúvidas lhe estava a causar. A
determinado momento recordou-se de se ter deslocado para o quartel da
corporação. Essa lembrança chegou-lhe num flash e atrás dessa outras foram
surgindo. Lembrou-se de se ter encontrado com Mike e terem bebeido um
black-coffee; recordou-se de ter colocado duas libras na lata de um animador de
rua ao sair do Metro, assim como o animado cumprimento que o senhor Watson lhe
endereçara ao entrar no quartel – o senhor Watson era um idoso que passava
parte do seu dia no quartel. Tratava-se de um homem sem família, para além
daquela que encontrara na 35ª Companhia e um outro vizinho. Nunca tivera filhos
e a mulher, sua companheira de vida, falecera vitima de doença. Agora, com 81
anos de idade, andava por ali e por ali acabara por fazer as suas refeições. Os
bombeiros da 35ª Companhia chamavam-lhe, carinhosamente, de “avô bombeiro”,
quando se referiam a ele em conversa com alguém externo à corporação. No diálogo
directo com o senhor, tratavam-no, respeitosamente, por “Senhor Watson”.
Algumas foram as ocasiões em que lhe disseram, em tom de brincadeira, mas que
ele encarava como muito sério - Senhor Watson, se não se alista para frequentar
o curso de bombeiro, um dia a Direcção não o deixa cá entrar – ao que ele
sempre respondia – Antes morrer do que ser proibido de aqui entrar. –
acrescentando – E quando morrer, as minhas poupanças e reforma hão-de ficar
para a 35º Companhia – desconhecendo o velho Watson que, no dia em que morrer,
o pagamento da subvenção expira.
Andrews nutria uma enorme amizade
pelo “avô bombeiro”. Apesar de saber que o Senhor Watson comia no quartel duas
vezes por semana, Andrews levava-lhe todos os dias um recipiente com sopa que a
sua mãe fazia.
- Senhor Watson, tem aqui a sopa
para comer antes de ir para a cama, quentinha, e assim dormir mais aconchegado.
– sempre que este acto se repetia, o senhor Watson agradecia, humildemente, com
enorme emoção, o gesto do jovem Andrews.
Concentrou-se um pouco mais. Tentou
mexer-se, novamente, mas tal intento foi infrutífero. Sentiu uma forte pontada
nas costelas, que lhe provocou perda de ar momentâneo. Tentou falar para se
escutar a si mesmo. Não conseguiu emitir algum som. – Que se passa? – pensou.
De súbito lembrou-se de ter escutado duas fortes explosões e da sua equipa ter
sido chamada a uma ocorrência para a St.ª Pancras Station. – Claro! Fomos
chamados para uma ocorrência grave em Stª Pancras Station. – recordou-se –
Mas... onde estou então? Porque está tudo escuro?
As dúvidas eram cada vez maiores e
mais intensas. Andrews tentava não entrar em pânico, mas sim manter o
discernimento, ainda que confuso. Apesar de ter dificuldade em controlar a
respiração, percebia que ela não falhava, a não ser quando sentia as pontadas quando
se tentava movimentar. Percebera que algo se passara e tentava manter-se focado
na sua exploração mental na procura de respostas às suas dúvidas. Não sabia
onde estava, pois a sua memória recente encontrava-se bloqueada. Nada via, nada
escutava. Essa era a sua maior dúvida; porque estaria isso a acontecer! De
repente viu surgir um feixe de claridade defronte de si. Ficou radiante ao
perceber que cada vez via mais claridade. Claridade essa que, inicialmente o
encandeara, mas posteriormente lhe permitira vislumbrar dois dos seus
camaradas. Estava vivo, estava acordado. Olhava-os e via-os a mexerem a boca,
mas não os escutava. – Que se passa comigo? Porque não escuto o que dizem? –
indagou-se, tentando levantar-se. Não conseguia mexer-se.
- Já cá estamos! – disse-lhe o Tomás
– Vamos tirar-te daí e colocar-te em segurança.
Alguns meses mais tarde, quando deu
início ao tratamento de fisioterapia na Walk Therapy Clinic, Andrews percebeu o
que realmente havia acontecido naquela manhã em que saiu com os seus camaradas
para a ocorrência em Stª Pancras Station. Foi o Comandante Peter que lhe
relatou o sucedido.
- ... e foi quando se escutaram as
duas explosões. De imediato recebemos na central a indicação do que se passava
e a primeira equipa a ser deslocada para o local foi a número 3. Outras
Companhias foram deslocadas para lá também. Soube-se, quase de imediato, que se
tratava de um atentado à bomba. Haviam muitos mortos, restos de corpos
espalhados por todo lado, feridos graves, o caos. – olhou a janela do quarto
que dava para o jardim frontal da Walk Therapy Clinic. Voltou a olhar Andrews –
Morreu muita gente... muita gente! – respirou fundo, prosseguindo – Chegámos à
Stª Pancras Station em pouco mais de três minutos. De imediato iniciamos a
nossa intervenção. Logo de seguida avançou a Equipa 1 e ficou a Equipa 2 de
prevenção. – passou as mãos pela face – Estávamos lá à cerca de uma hora, com
outras Companhias e a Protecção Civil, quando de súbito se deu a terceira
explosão. – respirou fundo – Já tínhamos tirado de lá muita gente, mas não parava de chegar mais gente em busca dos seus familiares. A Equipa 3 estava a
escorar o acesso norte à galeria do Metro quando ocorreu a explosão. Eras tu e
o Mitchel que estavam a colocar as escoras. A violência da explosão foi tal,
que foram os dois projectados para o interior da galeria. Tu ficaste de costas
na zona de uma das linhas, com uma enorme quantidade de escombros sobre ti.
Tiveste a sorte de caíres perto de uma das carruagens, o que fez com que não
fosses atingido directamente e te garantiu uma bolha de ar. Já o Mitchel foi
projectado de bruços, embateu contra a máquina de validação de bilhetes e foi
esmagado por uma parte do tecto, partindo-lhe a cervical. Com a violência do
impacto, uma costela perfurou-lhe o pulmão esquerdo e teve fracturas múltiplas.
Entrou em coma e não resistiu. – fez uma curta pausa – Tivemos dificuldade em
encontrar-te. Foi o Ralft que deu contigo. É um cão fantástico. – o tom de voz
era de gratidão – Quando te encontramos pensávamos que já te tínhamos perdido.
Estavas muito mal tratado. Não reagiste ao chamamento. Não falavas e não
apresentavas mobilidade. Foi bastante difícil, como podes imaginar, colocar-te
a maca de vácuo; mas conseguimos. A queda da plataforma superior esteve sempre
na iminência. Seria um desmoronamento fatal para todos os que ali estavam a
trabalhar. Houve ordens superiores para abandonarmos o local... – aproximou-se
de Andrews e segredou-lhe - ... esses engravatadinhos não sabem o que é
pertencer à 35ª Companhia. – Andrews sorriu – Bom, se havia ordens para sair,
nós saímos, mas vínhamos todos. – olhou-o de frente – Quanto a ti... - segurou-lhe
no rosto com ambas as mãos - ... os médicos garantem que vais voltar a andar,
normalmente. Os médicos garantem que vais voltar a falar. E se os médicos
garantem... eles é que são os médicos... tal como tu!
Vinte meses após os atentados de Stª
Pancras Station, Andrews entra pela primeira vez no quartel da 35ª Companhia.
Entrou pelo parque de viaturas. Deteve-se à entrada. Olhou o veículo da Equipa
3. Caminhou calmamente até junto do veículo e, colocando-lhe a palma da mão
direita sobre o símbolo da 35º Companhia, na zona frontal, cerrou os olhos. Não
percebeu quanto tempo ali esteve naquele estado de introspecção. Quando os
voltou a abrir, viu um grupo de bombeiros que o observavam em silêncio. Sem
nada dizer, o Comandante caminhou até junto de Andrews e ambos deram um sentido
abraço.
- Bem vindo a casa! – disse-lhe o
Comandante Peter.
As lágrimas corriam em bica face
abaixo, de Andrews. O abraço seguinte foi a Tomás Blake.
- Obrigado por não me teres
abandonado, por não teres desistido de mim.
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