A ida de ou o regresso a casa é efectuado de comboio. Poderia fazê-lo de carro, é verdade, mas o facto de o fazer de comboio permite-me, não apenas apreciar toda uma panóplia de pessoas, todas tão diferentes, com imensas histórias diárias, provenientes das mesmas mentes, como também ler; ler com gosto e prazer nos balanços e balanceio descompassado num compasso previsível do comboio, enquanto galga milhas, efectua paragens e retoma o andamento.
Gosto, então, de ler. Mas também gosto de viajar de comboio. Os sub-urbanos são os meus prediletos. Param em todas as estações e apeadeiros, são utilizados por todas as classes sociais, ou quase todas, demoram mais tempo a percorrer a distância e é ali que se encontram as mais fantásticas e hilariantes aventuras.
Num destes dias, no comboio das 7:26 horas, num dos bancos de seis lugares, três virados para outros três, viajavam seis pessoas, um homem e cinco espécimes que, em principio, não são possuidores de miudezas no baixo-ventre.
A conversa ia fluindo entre ele e uma ela, enquanto que os restantes elementos, ou simplesmente iam escutando as mais diversas teorias e conhecimentos exímios do macho do grupo, ou se limitavam, uma delas, a dedilhar duas agulhas envoltas em linha de lã.
Cada vez que a mulher que dialogava dizia algo, fosse o que fosse, sobre o tema que fosse, ele por cima, fantástico conhecedor da matéria, esgrimindo elevado conhecimento técnico apenas ao alcance de tão extraordinária sabedoria, sempre com um inicio de intervenção, bastante eloquente da ignorância da sua parceira de diálogo, com um «você não sabe, mas...», capaz de prender qualquer ouvido às suas explicações.
- Você não sabe, mas houve uma sonda espacial que caiu a 100 quilometros de profundidade e só com um submarino telecomandado a conseguiram ir buscar. - ou - Você não sabe, mas há um comboio que anda a 300 km/ h.
Mas foi naquele regresso a casa, após mais uma jornada de trabalho, sentado naquele banco junto à entrada, no que tem dois lugares virados entre eles, estando eu e a minha mochila, ali ao meu lado, quando lia um trilho do texto e estava completamente dentro da história, que tive a sensação de estar a ser observado.
Não posso precisar em que paragem foi que um casal octogenário entrou na mesma carruagem onde eu estava e se foram sentar no conjunto de bancos, quatro lugares, que se situava no lado contrário ao meu, na coxia. Chamou-me à atenção este casal, pela forma peculiar como ele se vestia; envergava uma farda de GNR, já bastante surrada, à cintura umas algemas, que não serviam certamente para fazer brincadeiras com a senhora acompanhante, e na cabeça uma boina dos comandos, seu grande orgulho, certamente.
Pensei por fracções de segundo, retomando a minha leitura, que o senhor viesse de alguma manifestação de ex-combatentes reformados. Mas não me recordei de ter escutado alguma coisa sobre o assunto.
O senhor sofria de problemas auditivos. Era perceptível, como vim a confirmar mais tarde. Falava muito alto, muito alto mesmo.
Estava então eu a ler o meu livro, curiosamente uma história onde a trama se passa, parte dela, no comboio; «A rapariga no comboio», quando me senti observado. Retirei a minha atenção da leitura e, levantando ligeiramente a cabeça, rodei-a para a direita; a pouco mais de quinze centímetros de mim, lá estava ele, o GNR octogenário com um odor a álcool, a observar-me.
- Você gosta de ler! - constactou num tom de voz elevado e com um bafo que quase me deixou em coma alcoólico.
Olhei a carruagem de soslaio. Fez-se silencio e todos os olhares desaguaram ali, no espaço que eu ocupava e que aquele homem invadira.
- Você gosta de ler! - repetiu, ao que anuí, pensando que a minha confirmação o fizesse regressar ao seu lugar na carruagem. Mas não! Continuou - Eu sou poeta! Em França escrevi poemas e romances.
Fiz uma cara de «muito bem, parabéns.». Ele não desistiu;
- Então o que está a ler? - questionou-me, ao que lhe mostrei a capa do livro. Soletrou-o e disse-me - Muito bom!
Fiquei na expectativa de que tivesse saldado a sua curiosidade e regressasse ao seu lugar. Os olhares da carruagem não desviavam do meu espaço e eu tentava ser cordial com o senhor, sem no entanto lhe dar espaço a mais conversa.
Foi então que aconteceu. Ele ainda não saciara a sua fome de cusquice e avançou com a frase;
- Você vive onde?
Fiquei a olhá-lo, nem sei se espantado com a forma directa de cusquice, se pela pergunta em si. Como não respondi de imediato, voltou a colocá-la;
- Você vive onde?
- Tem alguma coisa a ver com isso? - respondi-lhe em tom de pergunta, ao que ele disse;
- Hã?! Sesimbra? - Não respondi, insistiu. - Hã? Onde é que mora?
- Você não tem nada a ver com isso. - disse-lhe
- H~? Coimbra?
Toda a carruagem nos olhava. Ao aperceber-me que estava a chegar ao meu destino de chagada, levantei-me e disse;
- Desculpe, tenho de sair aqui.
Naquele momento os olhares desprenderam-se de nós e fiquei com a sensação que toda aquela gente estava há uma infinidade de tempo com a respiração presa e que naquele momento a tinham retomado.
- António, anda para aqui. - disse-lhe a senhora que o acompanhava, enquanto lhe puxava pela manga do casaco.
O comboio parou, as portas abriram-se e saí. Terminava ali mais um dia de histórias e estórias.
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