domingo, novembro 06, 2016

# O abraço que te dei



No jardim apenas havia uma árvore. Um chorão, como lhe chamavam. Rui chamava-lhe «Casa». Tratava-se de um chorão com mais de dez anos de vida, plantado num terreno isolado. Todos os dias aquele chorão ria, dançava e cantava.

Pela manhã, Rui corria até ao campo. Levava consigo a sua bola preferida, aquela que o pai lhe oferecera quando foram passear à capital

Antes de sair de casa, Rui lavava a cara. Muitas vezes como os gatos, com a ponta dos dedos médio e indicador, pouco molhados, porque a água estava fria. Vestia-se, tomava a refeição da manhã: um copo de leite quente e duas torradas barradas de manteiga. Lavava os dentes, muito bem escovados, como dizia o Lucas na televisão. O Lucas era um boneco animado que uma marca de dentífrico partilhava na televisão a ensinar as crianças a escovar os dentes.

Após a higiene, Rui vestia-se, calçava-se e, passando pela cozinha, recolhia duas ou três carcaças de pão do dia anterior, numa garrafa de água e num punhado de milho, daquele que a mãe lá tinha para fazer pipocas quando, ao domingo à tarde, ficava no sofá a ver o programa da tarde na televisão.

Rui, um menino de seis anos de idade, traquinas como qualquer outro menino da sua idade, gostava, para além de brincar junto ao chorão, de ver televisão. E muitos eram os momentos em que em frente ao ecrã ficava a ver programas sobre a natureza, os animais e o planeta. Sempre dizia:

- Mãe, quando for grande vou fazer uma lei que proíba cortar as árvores ou sujar os rios.
Rui preocupava-se muito com o que ouvia na televisão sobre a poluição, a floresta Amazónica e a destruição do habitat dos animais. Não compreendia a razão que levava os homens a cortarem as árvores. Por vezes, durante a noite, a mãe tinha de ir para junto dele, enquanto dormia e acalmá-lo. Muitas eram as vezes em que sonhava que homens de serras cortavam o seu chorão e matavam os pássaros que nele pousavam ao longo do dia, os pássaros que pela manhã primaveril cantavam melodias que enchiam o vale dos seus sonhos de um encanto floreal completo por uma luminescência de vida e encanto.

- Parem! Parem! Deixem os meus amigos. – gritava irrequieto, enquanto dormia.
- Calma, Rui! Estás a sonhar. – dizia-lhe a mãe, enquanto o beijava, lhe afagava o cabelo e acariciava a face.

Pela manhã o Rui não se lembrava do sonho, nem tão pouco da mãe ter estado com ele durante a noite. Mas quando acordava, fazia a sua rotina matinal e, passando pela garagem, agarrava na bola e corria, já com o saco do pão do dia anterior, com o milho e com a garrafa de água, em direcção ao terreno onde estava plantada a árvore.
Todos os dias, quando chegava «a casa», como dizia, o Rui ia servir a refeição da manhã aos seus amigos. Despejava o litro e meio de água junto ao tronco do chorão, dizendo-lhe sempre:

- Toma, bebe tudo! – dizia, enquanto despejava calmamente o liquido junto à base do tronco – Tens de te alimentar para cresceres forte.
Sobre a sua cabeça, nos ramos da árvore, começava a ganhar forma a orquestra, com os seus elementos a ocuparem os seus lugares. Testavam, numa afinação perfeita, os seus dotes naturais. Rui sorria ao olhar para cima e a ver o alinhamento dos pintassilgos, verdilhões e pardalocos nos ramos do seu amigo chorão. Após alimentar a árvore, dava-lhe um valente abraço.
- Adoro-te! – dizia-lhe, dia após dia, ao que a árvore parecia responder-lhe com umas sacudidelas dos seus ramos, resultante da suave e aveludada brisa que pairava.

Terminado o ritual da alimentação ao chorão, Rui sentava-se com as costas apoiadas no seu tronco e abria o saco do pão e milho que trazia consigo. Mergulhava a mão esquerda no seu interior e, já por essa ocasião se dispunham diante de si, num alinhamento militar, a passarada ávida de uma refeição de pão e milho que, sabiam, Rui guardava dentro do saco.

Cuidadosamente o rapaz colocava os pedaços de pão partidos em pequeníssimas partes, junto dos seus amigos de menor estatura e os grãos de milho um pouco mais ao lado, onde as pombas aguardavam. Rui ficava a contempla-los. Por vezes , quando terminava o banquete, um pintassilgo ou um pardal bicavam no saco, dando indicação que queriam mais. Rui gostava de os ver a pedir. Nessa altura retirava um pouco mais e depositava sobre o chão. Enquanto houvesse pão e milho dentro do saco, eles ali permaneciam junto do Rui. Quando o alimento terminava, lá levantavam voo, indo cada um à sua ocupada vida de pássaro.

Por essa ocasião o Rui pegava na sua bola e dava início a um verdadeiro jogo de futebol, com relato e tudo, feito por ele numa emoção só. Relatava, com grande primor, enquanto encarnava a personagem de cada jogador que conhecia, por escutar o pai e o avô a falarem dos jogos que passavam na televisão.

- Pedro passa para Manuel, que passa para Artur, que passa para João, que passa para Rui, que remata e goooooollllloooo. – gritava enquanto corria à volta da árvore que assumia o papel de adversário algumas vezes, e guarda-redes noutras.
- É falta! – dizia, por vezes tropeçando no tronco do chorão e atirando-se para o chão.
 – Levante-se, senhor jogador! – dizia, adoptando o papel de árbitro e colocando-se em pé, para de seguida se voltar a deitar.
- Ele fez-me uma rasteira. – dizia estendido no chão, olhando para o infinito, onde estava no momento seguinte.
- Nada disso! Levante-se… - proferia, assumindo outra vez e após se levantar, o lugar do árbitro.
- Ladrão! – disse, como escutava o avô dizer para a televisão, contraindo, no chão, o papel do jogador, zangado.

E a brincadeira lá prosseguia, manhã dentro. Umas vezes a jogar às escondidas, com o seu amigo chorão e uns quantos amigos imaginários. Outras vezes à apanhada com a árvore, correndo em sua volta, passando perto e com movimentos de fuga, afastando-se, como se ela lhe esticasse um braço para o apanhar, ou dando saltitos como se de uma gazela se tratasse, dizendo-lhe.

- Olha eu aqui! Olha eu aqui! Vê lá se me apanhas! Ui! Estava quase, mas sou mais rápido.

Já perto da hora de almoço escutava a sua mãe que o chamava, para que fosse almoçar.

- Já vou. – gritava lá do terreno junto do chorão, dizendo à árvore – Vou almoçar e já venho. Trago-te almoço.

Os dias, meses e anos foram passando, e Rui lá se mantinha fiel na sua amizade pelo chorão e toda aquela passarada que na zona habitava, ou ali se deslocava na busca de uma refeição diferente.

Um dia, porem, Rui foi estudar para a cidade e só vinha a casa uma vez por mês. Isso fazia com que o tempo disponível fosse pouco, havendo vezes em que o rapaz apenas olhava o chorão de longe, apesar de ter uma enorme estima e afecto por aquela árvore, companheira de tantas aventuras e segredos. Foi a ela que Rui confidenciou o seu primeiro beijo, aquele que deu à Raquel e lhe valeu tantas horas de sono perdido numa paixão arrebatadora.

               Os anos passaram e Rui foi para a universidade, cresceu e formou-se. Dos namoricos de adolescente, nasceu uma namorada a sério. Com a mudança na sua vida, cada vez menos ia visitar o seu sítio de criança. No entanto, sempre que se sentia mais cansado, deitado na sua cama, lembrava aqueles longínquos tempos de criança e seus rituais.

               Um dia, já em avançada estação primaveril, Rui caminhou até aquele tranquilo espaço. Passando junto ao chorão, olhou-o e verificou que a árvore não tinha folhas, apenas ramos secos. Que não havia pássaros, não havia orquestra e nem brisa corria. Parecia que o Inverno não abandonara a árvore, ou esta não largara o Inverno.

               - Está assim desde o ano em que foste para Lisboa estudar. – era a voz de seu pai, que lhe surgia nas costas, no caminho. – Já estive para a cortar, mas apareciam sempre outros afazeres e olha, fui adiando. – dizia o pai do Rui, continuando – Está seco. Talvez amanhã arranje um tempinho para o fazer. – ia conversando com o Rui, quando por detrás deles, em plena corrida, surgiu Francisco.
               - Eu sou o homem-aranha… - gritava - …e esta árvore é a minha casa para lutar contra os ladrões.
               Numa enorme correria, Francisco, de cinco anos, filho do Rui, deu voltas e mais voltas agarrado ao chorão, às pernas do pai e do avô.
               - Pai! – disse – Agarra-me e senta-me na minha casa. – pedia, esticando os braços para cima, em direcção ao pai.

               Esse dia foi passado junto à árvore, com o pequeno Francisco, ora empoleirado, ora a correr à sua volta. O avô colocou uma mesa e uns chapéus-de-sol e fizeram ali mesmo um pic-nic e um lanche. No final do dia, quando regressavam a casa, o pequeno Francisco parou no meio do curto carreiro que mediava o lugar da casa e, correndo, deu um enorme abraço ao chorão.

               Na manhã seguinte quando acordaram, o Francisco quis ir brincar para junto da árvore. Qual não foi o espanto quando lá chegaram e verificaram que o chorão estava repleto de pequenas folhas, num verde-claro, luzidio, que parecia enfeitado com luzes de cristal a brilharem com os raios de sol que incidiam no orvalho da manhã.


Desde esse dia, todos os meses, o Rui passou a visitar o local onde crescera e brincara, levando consigo o seu filho, pois percebera que a natureza, também, tem um sentimento que não conseguia explicar. Percebeu como era importante educar o filho junto à natureza, para que ele percebesse que, preservando-a, todos seriam muito mais felizes.

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