No jardim apenas havia uma árvore. Um
chorão, como lhe chamavam. Rui chamava-lhe «Casa». Tratava-se de um chorão com
mais de dez anos de vida, plantado num terreno isolado. Todos os dias aquele
chorão ria, dançava e cantava.
Pela manhã, Rui corria até ao campo.
Levava consigo a sua bola preferida, aquela que o pai lhe oferecera quando
foram passear à capital
Antes de sair de casa, Rui lavava a
cara. Muitas vezes como os gatos, com a ponta dos dedos médio e indicador,
pouco molhados, porque a água estava fria. Vestia-se, tomava a refeição da
manhã: um copo de leite quente e duas torradas barradas de manteiga. Lavava os
dentes, muito bem escovados, como dizia o Lucas na televisão. O Lucas era um
boneco animado que uma marca de dentífrico partilhava na televisão a ensinar as
crianças a escovar os dentes.
Após a higiene, Rui vestia-se,
calçava-se e, passando pela cozinha, recolhia duas ou três carcaças de pão do
dia anterior, numa garrafa de água e num punhado de milho, daquele que a mãe lá
tinha para fazer pipocas quando, ao domingo à tarde, ficava no sofá a ver o
programa da tarde na televisão.
Rui, um menino de seis anos de idade,
traquinas como qualquer outro menino da sua idade, gostava, para além de
brincar junto ao chorão, de ver televisão. E muitos eram os momentos em que em
frente ao ecrã ficava a ver programas sobre a natureza, os animais e o planeta.
Sempre dizia:
- Mãe, quando for grande vou fazer
uma lei que proíba cortar as árvores ou sujar os rios.
Rui preocupava-se muito com o que ouvia
na televisão sobre a poluição, a floresta Amazónica e a destruição do habitat
dos animais. Não compreendia a razão que levava os homens a cortarem as
árvores. Por vezes, durante a noite, a mãe tinha de ir para junto dele,
enquanto dormia e acalmá-lo. Muitas eram as vezes em que sonhava que homens de
serras cortavam o seu chorão e matavam os pássaros que nele pousavam ao longo
do dia, os pássaros que pela manhã primaveril cantavam melodias que enchiam o
vale dos seus sonhos de um encanto floreal completo por uma luminescência de
vida e encanto.
- Parem! Parem! Deixem os meus
amigos. – gritava irrequieto, enquanto dormia.
- Calma, Rui! Estás a sonhar. –
dizia-lhe a mãe, enquanto o beijava, lhe afagava o cabelo e acariciava a face.
Pela manhã o Rui não se lembrava do
sonho, nem tão pouco da mãe ter estado com ele durante a noite. Mas quando
acordava, fazia a sua rotina matinal e, passando pela garagem, agarrava na bola
e corria, já com o saco do pão do dia anterior, com o milho e com a garrafa de
água, em direcção ao terreno onde estava plantada a árvore.
Todos os dias, quando chegava «a
casa», como dizia, o Rui ia servir a refeição da manhã aos seus amigos.
Despejava o litro e meio de água junto ao tronco do chorão, dizendo-lhe sempre:
- Toma, bebe tudo! – dizia, enquanto
despejava calmamente o liquido junto à base do tronco – Tens de te alimentar
para cresceres forte.
Sobre a sua cabeça, nos ramos da
árvore, começava a ganhar forma a orquestra, com os seus elementos a ocuparem
os seus lugares. Testavam, numa afinação perfeita, os seus dotes naturais. Rui
sorria ao olhar para cima e a ver o alinhamento dos pintassilgos, verdilhões e
pardalocos nos ramos do seu amigo chorão. Após alimentar a árvore, dava-lhe um
valente abraço.
- Adoro-te! – dizia-lhe, dia após
dia, ao que a árvore parecia responder-lhe com umas sacudidelas dos seus ramos,
resultante da suave e aveludada brisa que pairava.
Terminado o ritual da alimentação ao
chorão, Rui sentava-se com as costas apoiadas no seu tronco e abria o saco do
pão e milho que trazia consigo. Mergulhava a mão esquerda no seu interior e, já
por essa ocasião se dispunham diante de si, num alinhamento militar, a
passarada ávida de uma refeição de pão e milho que, sabiam, Rui guardava dentro
do saco.
Cuidadosamente o rapaz colocava os
pedaços de pão partidos em pequeníssimas partes, junto dos seus amigos de menor
estatura e os grãos de milho um pouco mais ao lado, onde as pombas aguardavam.
Rui ficava a contempla-los. Por vezes , quando terminava o banquete, um
pintassilgo ou um pardal bicavam no saco, dando indicação que queriam mais. Rui
gostava de os ver a pedir. Nessa altura retirava um pouco mais e depositava
sobre o chão. Enquanto houvesse pão e milho dentro do saco, eles ali
permaneciam junto do Rui. Quando o alimento terminava, lá levantavam voo, indo cada
um à sua ocupada vida de pássaro.
Por essa ocasião o Rui pegava na sua
bola e dava início a um verdadeiro jogo de futebol, com relato e tudo, feito
por ele numa emoção só. Relatava, com grande primor, enquanto encarnava a
personagem de cada jogador que conhecia, por escutar o pai e o avô a falarem
dos jogos que passavam na televisão.
- Pedro passa para Manuel, que passa
para Artur, que passa para João, que passa para Rui, que remata e
goooooollllloooo. – gritava enquanto corria à volta da árvore que assumia o
papel de adversário algumas vezes, e guarda-redes noutras.
- É falta! – dizia, por vezes
tropeçando no tronco do chorão e atirando-se para o chão.
– Levante-se, senhor jogador! – dizia, adoptando
o papel de árbitro e colocando-se em pé, para de seguida se voltar a deitar.
- Ele fez-me uma rasteira. – dizia
estendido no chão, olhando para o infinito, onde estava no momento seguinte.
- Nada disso! Levante-se… - proferia,
assumindo outra vez e após se levantar, o lugar do árbitro.
- Ladrão! – disse, como escutava o
avô dizer para a televisão, contraindo, no chão, o papel do jogador, zangado.
E a brincadeira lá prosseguia, manhã
dentro. Umas vezes a jogar às escondidas, com o seu amigo chorão e uns quantos
amigos imaginários. Outras vezes à apanhada com a árvore, correndo em sua
volta, passando perto e com movimentos de fuga, afastando-se, como se ela lhe
esticasse um braço para o apanhar, ou dando saltitos como se de uma gazela se
tratasse, dizendo-lhe.
- Olha eu aqui! Olha eu aqui! Vê lá
se me apanhas! Ui! Estava quase, mas sou mais rápido.
Já perto da hora de almoço escutava a
sua mãe que o chamava, para que fosse almoçar.
- Já vou. – gritava lá do terreno
junto do chorão, dizendo à árvore – Vou almoçar e já venho. Trago-te almoço.
Os dias, meses e anos foram passando,
e Rui lá se mantinha fiel na sua amizade pelo chorão e toda aquela passarada
que na zona habitava, ou ali se deslocava na busca de uma refeição diferente.
Um dia, porem, Rui foi estudar para a
cidade e só vinha a casa uma vez por mês. Isso fazia com que o tempo disponível
fosse pouco, havendo vezes em que o rapaz apenas olhava o chorão de longe,
apesar de ter uma enorme estima e afecto por aquela árvore, companheira de
tantas aventuras e segredos. Foi a ela que Rui confidenciou o seu primeiro
beijo, aquele que deu à Raquel e lhe valeu tantas horas de sono perdido numa
paixão arrebatadora.
Os
anos passaram e Rui foi para a universidade, cresceu e formou-se. Dos namoricos
de adolescente, nasceu uma namorada a sério. Com a mudança na sua vida, cada
vez menos ia visitar o seu sítio de criança. No entanto, sempre que se sentia
mais cansado, deitado na sua cama, lembrava aqueles longínquos tempos de
criança e seus rituais.
Um
dia, já em avançada estação primaveril, Rui caminhou até aquele tranquilo
espaço. Passando junto ao chorão, olhou-o e verificou que a árvore não tinha
folhas, apenas ramos secos. Que não havia pássaros, não havia orquestra e nem
brisa corria. Parecia que o Inverno não abandonara a árvore, ou esta não
largara o Inverno.
-
Está assim desde o ano em que foste para Lisboa estudar. – era a voz de seu
pai, que lhe surgia nas costas, no caminho. – Já estive para a cortar, mas
apareciam sempre outros afazeres e olha, fui adiando. – dizia o pai do Rui,
continuando – Está seco. Talvez amanhã arranje um tempinho para o fazer. – ia
conversando com o Rui, quando por detrás deles, em plena corrida, surgiu
Francisco.
-
Eu sou o homem-aranha… - gritava - …e esta árvore é a minha casa para lutar
contra os ladrões.
Numa
enorme correria, Francisco, de cinco anos, filho do Rui, deu voltas e mais
voltas agarrado ao chorão, às pernas do pai e do avô.
-
Pai! – disse – Agarra-me e senta-me na minha casa. – pedia, esticando os braços
para cima, em direcção ao pai.
Esse
dia foi passado junto à árvore, com o pequeno Francisco, ora empoleirado, ora a
correr à sua volta. O avô colocou uma mesa e uns chapéus-de-sol e fizeram ali
mesmo um pic-nic e um lanche. No final do dia, quando regressavam a casa, o
pequeno Francisco parou no meio do curto carreiro que mediava o lugar da casa
e, correndo, deu um enorme abraço ao chorão.
Na
manhã seguinte quando acordaram, o Francisco quis ir brincar para junto da
árvore. Qual não foi o espanto quando lá chegaram e verificaram que o chorão
estava repleto de pequenas folhas, num verde-claro, luzidio, que parecia
enfeitado com luzes de cristal a brilharem com os raios de sol que incidiam no
orvalho da manhã.
Desde esse
dia, todos os meses, o Rui passou a visitar o local onde crescera e brincara,
levando consigo o seu filho, pois percebera que a natureza, também, tem um
sentimento que não conseguia explicar. Percebeu como era importante educar o
filho junto à natureza, para que ele percebesse que, preservando-a, todos
seriam muito mais felizes.
Foto: Rui Zilhão Texto: Miguel Branco
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