MATILDE
Se há família que merece a minha ajuda,
essa família é a de António e Manuela Pereira; pela carência económica, o seu
estado social e, principalmente, pela humildade, educação e esforço que aqueles
pais sempre fizeram para proporcionar o melhor ao seu filho, o pequeno Armando.
Aquele primeiro dia de escola mudou,
definitivamente, a minha experiência como professora. A educação daquela
criança, filho de pais com parcos estudos e alfabetização, fez-me parar e
reflectir sobre a maneira de olhar as desiguais realidades e as veracidades
escondidas na sociedade azinhaguense.
A madrasta vida facilmente os poderia
orientar e conduzir a uma postura crispa, grosseira ou mesmo embrutecida. Mas
não! Quando Manuela se apresentou com o pequeno Armando, pela mão, permaneceram
em silêncio no átrio de acesso ao edifício de ensino, junto a uma das árvores
que proporcionam sombra ao recreio das crianças, em contraste com a sinfonia de
carpimento das outras crianças e dos brados de algumas mães, na tentativa fracassada
de os calarem. Depois, a forma humilde e reservada como se dirigiram a mim,
contando-me Manuela que o seu filho era invisual.
Alguns anos mais tarde Matilde viria a
congratular-se de ter dado a mão ao pequeno Armando, não apenas no sentido
físico, quando lhe sentiu o calor do sangue no seu aperto inicial, mas também
no sentido figurado, ao invés de lhe ter virado as costas, como mais inteligível
seria e como a comunidade azinhaguense fez, seguindo a sua vida como se nada
tivesse sucedido
.
Filha de pais, também eles docentes, Matilde
nunca casara; havia-lhe sido conhecido um namorado, um rapaz afável, de bom
trato, proletário, apesar da sua tenra idade de dezanove anos e que exercia
labuta numa carpintaria no lugar de Cinfães, no distrito de Viseu, terra natal
de Matilde.
Um dia, pela manhã, marcava o relógio da
torre da igreja de arquitectura barroca e neoclássica, edificada no Jardim
Serpa Pinto, as 10:12 horas quando o senhor Adalberto indicou ao jovem Pedro
que largasse o que estava a fazer e se apresentasse no escritório.
O rapaz, que estava a passar a plaina numa
das pernas da cadeira que a dona Francelina tinha encomendado, parou a
ferramenta, sacudiu o pó da madeira que tinha na roupa e nas mãos e
encaminhou-se ao escritório; bateu à porta e aguardou.
- Entra Pedro! – autorizou senhor
Adalberto.
Pedro abriu a porta de madeira
laminada, envidraçada, e entrou. Ao deparar-se com os dois homens da Guarda
Nacional Republicana, quase que tinha a certeza da razão de o terem chamado.
- Senhor Pedro Afonso Martins
Marques? – perguntou um deles.
- Sim, senhor! – respondeu.
- Assine aqui! – ordenou o homem num
tom de voz rude e impolido.
- O que é isto? – indagou o jovem,
após ter assinado a folha sem uma leitura prévia.
- Considere-se notificado para no
próximo dia 12, ou seja, daqui a uma semana exactamente, se apresentar no Centro
de Recrutamento de Viseu para integrar o pelotão de militares que irá partir
para Angola. – informou.
A notícia caiu como uma bomba. O
rapaz passou o resto do dia a chorar, em prantos, como uma criança a quem retiraram
o seu brinquedo preferido. Quando chegou a hora de almoço, o patrão informou
Pedro que podia tirar o resto do dia e da semana. Abriu uma gaveta da
secretária do escritório e, de lá, retirou vinte e dois escudos. Entregou-os ao
rapaz.
- Toma. É o teu salário deste mês.
Vê se cuidas de ti lá pelas terras de ultramar. – deu-lhe um abraço – E quando
regressares, tens aqui o teu lugar na serração.
Pedro regressou a casa, deprimido.
- Ai, que desgraça a nossa! – disse a mãe,
em carpidos, agarrada a ele – Estes bandidos querem levar-te para longe de mim,
para morreres lá por ultramar.
- Cala-te, mulher dum raio. Ainda agoiras
o rapaz. – ralhava o marido, pai de Pedro.
No sofá, forrado a napa de cor verde,
Matilde mantinha-se sentada, sem nada dizer, com a cabeça entre as mãos e os
cotovelos apoiados nos joelhos.
Mais tarde lamentou não ter aceitado fugir
para Espanha com Pedro, quando este se propôs a desertar e a alvorar para o
país vizinho. Argumentou, pela ocasião, Pedro, que ali, em terras de Franco,
poderia conseguir um trabalho, um sítio para morarem e dessa forma escapar a
uma ida para o continente africano.
Matilde convencera-o a não o fazer, pois
estava a terminar o liceu e iria tornar-se professora primária, auferir um
salário agradável e, quando ele regressasse de ultramar, talvez e no máximo ao
final de trinta e seis meses, casar-se-iam, ele seguiria no seu trabalho de
carpinteiro na oficina do senhor Adalberto e dessa forma terem a sua casa e
filhos. Fugir, argumentava, era crime. Era algo que os seus pais jamais
aprovariam ou tolerariam que fizesse; e ela nunca iria cortar com os princípios
educacionais e doutrinais de seus pais.
Passavam dezasseis minutos das quinze
horas do dia 3 de Março de 1953 quando a sirene do navio deu sinal que iria
desatracar do porto de Lisboa. Eram centenas as pessoas que se despediam,
acenando, clamando os seus nomes e chorando, dos bravos soldados, sem saberem,
no entanto, se voltariam a encontrar-se.
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