terça-feira, março 31, 2020

Ensaio sobre o amor - 9 - Matilde

(continuação)


MATILDE

Se há família que merece a minha ajuda, essa família é a de António e Manuela Pereira; pela carência económica, o seu estado social e, principalmente, pela humildade, educação e esforço que aqueles pais sempre fizeram para proporcionar o melhor ao seu filho, o pequeno Armando.
Aquele primeiro dia de escola mudou, definitivamente, a minha experiência como professora. A educação daquela criança, filho de pais com parcos estudos e alfabetização, fez-me parar e reflectir sobre a maneira de olhar as desiguais realidades e as veracidades escondidas na sociedade azinhaguense.

A madrasta vida facilmente os poderia orientar e conduzir a uma postura crispa, grosseira ou mesmo embrutecida. Mas não! Quando Manuela se apresentou com o pequeno Armando, pela mão, permaneceram em silêncio no átrio de acesso ao edifício de ensino, junto a uma das árvores que proporcionam sombra ao recreio das crianças, em contraste com a sinfonia de carpimento das outras crianças e dos brados de algumas mães, na tentativa fracassada de os calarem. Depois, a forma humilde e reservada como se dirigiram a mim, contando-me Manuela que o seu filho era invisual.

Alguns anos mais tarde Matilde viria a congratular-se de ter dado a mão ao pequeno Armando, não apenas no sentido físico, quando lhe sentiu o calor do sangue no seu aperto inicial, mas também no sentido figurado, ao invés de lhe ter virado as costas, como mais inteligível seria e como a comunidade azinhaguense fez, seguindo a sua vida como se nada tivesse sucedido
.
Filha de pais, também eles docentes, Matilde nunca casara; havia-lhe sido conhecido um namorado, um rapaz afável, de bom trato, proletário, apesar da sua tenra idade de dezanove anos e que exercia labuta numa carpintaria no lugar de Cinfães, no distrito de Viseu, terra natal de Matilde.
Um dia, pela manhã, marcava o relógio da torre da igreja de arquitectura barroca e neoclássica, edificada no Jardim Serpa Pinto, as 10:12 horas quando o senhor Adalberto indicou ao jovem Pedro que largasse o que estava a fazer e se apresentasse no escritório.
O rapaz, que estava a passar a plaina numa das pernas da cadeira que a dona Francelina tinha encomendado, parou a ferramenta, sacudiu o pó da madeira que tinha na roupa e nas mãos e encaminhou-se ao escritório; bateu à porta e aguardou.
- Entra Pedro! – autorizou senhor Adalberto.
            Pedro abriu a porta de madeira laminada, envidraçada, e entrou. Ao deparar-se com os dois homens da Guarda Nacional Republicana, quase que tinha a certeza da razão de o terem chamado.
            - Senhor Pedro Afonso Martins Marques? – perguntou um deles.
            - Sim, senhor! – respondeu.
            - Assine aqui! – ordenou o homem num tom de voz rude e impolido.
            - O que é isto? – indagou o jovem, após ter assinado a folha sem uma leitura prévia.
            - Considere-se notificado para no próximo dia 12, ou seja, daqui a uma semana exactamente, se apresentar no Centro de Recrutamento de Viseu para integrar o pelotão de militares que irá partir para Angola. – informou.

            A notícia caiu como uma bomba. O rapaz passou o resto do dia a chorar, em prantos, como uma criança a quem retiraram o seu brinquedo preferido. Quando chegou a hora de almoço, o patrão informou Pedro que podia tirar o resto do dia e da semana. Abriu uma gaveta da secretária do escritório e, de lá, retirou vinte e dois escudos. Entregou-os ao rapaz.
            - Toma. É o teu salário deste mês. Vê se cuidas de ti lá pelas terras de ultramar. – deu-lhe um abraço – E quando regressares, tens aqui o teu lugar na serração.
 Pedro regressou a casa, deprimido.

- Ai, que desgraça a nossa! – disse a mãe, em carpidos, agarrada a ele – Estes bandidos querem levar-te para longe de mim, para morreres lá por ultramar.
- Cala-te, mulher dum raio. Ainda agoiras o rapaz. – ralhava o marido, pai de Pedro.
No sofá, forrado a napa de cor verde, Matilde mantinha-se sentada, sem nada dizer, com a cabeça entre as mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos.
Mais tarde lamentou não ter aceitado fugir para Espanha com Pedro, quando este se propôs a desertar e a alvorar para o país vizinho. Argumentou, pela ocasião, Pedro, que ali, em terras de Franco, poderia conseguir um trabalho, um sítio para morarem e dessa forma escapar a uma ida para o continente africano.
Matilde convencera-o a não o fazer, pois estava a terminar o liceu e iria tornar-se professora primária, auferir um salário agradável e, quando ele regressasse de ultramar, talvez e no máximo ao final de trinta e seis meses, casar-se-iam, ele seguiria no seu trabalho de carpinteiro na oficina do senhor Adalberto e dessa forma terem a sua casa e filhos. Fugir, argumentava, era crime. Era algo que os seus pais jamais aprovariam ou tolerariam que fizesse; e ela nunca iria cortar com os princípios educacionais e doutrinais de seus pais.
Passavam dezasseis minutos das quinze horas do dia 3 de Março de 1953 quando a sirene do navio deu sinal que iria desatracar do porto de Lisboa. Eram centenas as pessoas que se despediam, acenando, clamando os seus nomes e chorando, dos bravos soldados, sem saberem, no entanto, se voltariam a encontrar-se.

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