Capítulo 2
Recordara-se que prometera,
agarrado ao caixão da mãe, que não iria fraquejar e sim lutar com todas as suas
forças para ter uma vida minimamente digna. Chorou num pranto seco, emoções sem
fim, murmurando junto da urna como se ao ouvido de Manuela contasse um segredo,
como anteriormente fazia na sua cumplicidade umbilical. «Prometeste não
deixar-me e agora vais partir. Que vai ser de mim? Sim, vou ser forte e lutar,
mas também vou ser mudo e pouco falar».
Desde esse dia poucos foram os que
escutaram um som sair das cordas vocais daquele rapaz que tantas histórias, a
todos, habituara a contar. Nem mesmo quando aquele homem lhe disse «Amigo, não
faça isso!», ele reagiu ou tentou argumentar a sua dor.
Quis voltar atrás, mas os pés não
correspondiam às ordens que o seu cérebro emitiu. Quis falar, pedir ajuda,
tentou gritar, mas o sufoco ardente que o queimara, um grito de guerra, nos
seus pulmões, abafaram-lhe a voz, aquela que ao longo de tantos e tantos anos
se acomodou ao silêncio quase adormecido, obstinado à escuridão imposta, à dor
da perda, ao abandono das emoções, daquelas mais puras e claras que o Homem
deve ter, ser detentor, dono, deve preservar, deve cultivar, para que não se
torne numa pedra, num pedaço de nada a vaguear ao vento incerto, inconstante,
das vontades alheias, da raiva muda, do desespero, da ansia escondida, depauperada,
mergulhada em centenas de milhares de quilómetros de atrocidades cavadas em
mares incógnitos, no pavor, na miserável dilaceração de um ser.
Mas fora nisto que Armando se
transformara, não aos onze anos de idade quando sua mãe morreu de pneumonia,
mas pouco tempo depois, com cerca de quinze anos de idade quando, um dia, ao
chegar a casa, vindo da escola, depois de aguardar por seu pai, se deparou com
a surpresa, amarga surpresa.
Esperou, esperou, esperou, num anseio da
sua chegada. Como tal não aconteceu, foi caminhando, apoiado no seu cajado, até
chegar a casa. Conhecia bem o caminho. Fizera-o vezes infinitas.
Tacteando entrou em casa e, para sua
miséria, deu com o pai, após vários chamamentos e tácteis procuras, enforcado.
António não resistiu a uma solitária mágoa
provocada pela partida prematura de Manuela. Entrara em depressão, isolara-se
de tudo e no silêncio de Armando foi-se deixando abater num desmazelo ainda
mais pobre do que aquele que a vida já lhe havia brindado.
Nem o Padre Fernando conseguira ser aquele
homem, sempre disponível, para ajudar nas conversas de igreja.
Armando viu-se, aos quinze anos de idade,
sozinho num mundo hostil, desamparado. Sentiu-se uma pequena pinta de tinta
perdida no centro de uma tela branca, sem vida, sem esperança, sem passado e
sem futuro. As suas pernas vacilavam num tiritar que não conhecia.
Foi encontrado em casa, estando ainda o
corpo do pai pendurado, dois dias depois A professora Matilde dera por falta dele
na escola. Foi ela que, após muito chamamento à porta da casa dos Pereira,
resolveu entrar.
Triste quadro de pintura real, aquele, com
António Cebola pendente pelo pescoço num lençol velho e Armando caído no chão,
aos seus pés.
Correu para ele. Chamou-o!
- Armando, Armando, acorda Armando.
Enquanto olhava, incrédula, para António
ali pendurado, num vazio de tempo, pensava «O que vai ser deste menino?».
Tinha um carinho muito intenso por
Armando, não apenas devido ao problema que este fruía, mas também pelo
respeito, a educação, a ambição e força emocional que demonstrava, defronte dos
outros meninos. Recordava, ali, enquanto lhe amparava a cabeça e o tentava
acordar, do primeiro dia de escola.
Manuela levara-o.
Tantos, quase todos na verdade, eram os
meninos que choravam por ocasião da separação da mãe à entrada da sala de aula.
Mas Armando não!
Armando permanecia sereno junto de sua mãe,
aguardando a chamada do seu nome.
- Armando Pereira. - disse a professora
Matilde, ao que o Armando. levantando o braço esquerdo, pois era canhoto, disse;
- Estou aqui! - num tom de voz
envergonhado, mas que demonstrava vontade de entrar.
- Ele não vê. - disse-lhe Manuela, num tom
baixo, quase num sussurro tímido e comprometido - O meu filhinho não vê,
senhora professora Matilde!
Agora olhava Armando, ali caído naquele
chão, sem reagir ao seu chamamento, desacordado. Matilde recorda o carinho que
por ele sentiu desde aquele primeiro dia de escola.
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