terça-feira, dezembro 20, 2016

# Riscas, a Boneca



Era uma vez…
            Lembro-me do dia em que a Riscas chegou lá a casa. Foi num domingo, estava sol e fazia calor. Eu estava na minha vida, a passear pelo jardim, quando o pai chegou de carro. O Huguinho, um menino de sete anos de idade, como era seu hábito, também por ali andava, a correr, a pular e a jogar à bola. Ao ver o pai chegar, o rapazito deu uma valente corrida, saltando-lhe para o colo, dando-lhe uma enorme beijoca.

            - Onde está? Onde está? – perguntava, todo excitado.
            - Calma, Huguinho! – disse-lhe o pai, tentando controlar o impulso do filho.
            - Onde está? Onde está? – continuava impaciente.


            O pai, o senhor Francisco, abriu a porta detrás do carro e, do seu interior, retirou uma caixa de papelão. Fiquei curiosa a olhar para aquela enorme caixa e a tentar perceber o que ali vinha dentro. Quando a pousaram no chão, reparei que o senhor Francisco se debruçou no seu interior. Ao levantar-se… lá estava ela! - «Comida!» - pensei, enquanto babava.

            - É tão linda! – disse o Huguinho.
            - Gostas? – perguntou o pai.
            - Sim! – respondeu excitado, o rapazinho.
            - É para ti. – disse-lhe o pai.
            - Viva! Viva! – ficou radiante com a sua nova amiga – Vou chamar-lhe “Riscas”. – disse.
            - Riscas? – questionou a mãe, que entretanto chegara.
            - Sim, Riscas! Olha o pêlo dela. Todo às riscas.

            E assim ganhou a “Riscas” o seu nome.
            A Riscas era uma cadela muito ativa. Como qualquer cachorro bebé, também a Riscas só queria brincar. A cadelita corria, saltava e rebolava pelo jardim. O Huguinho sempre atrás dela, era a felicidade em pessoa.
            Eu também adorei aquela cadela; primeiro porque significava comida e depois porque era, realmente, muito bonita e divertida. Acabei igualmente por adotar a Riscas e passei a andar sempre com ela, nas corridas, nas brincadeiras, nos passeios e nos sonos.
            Aquele fantástico alimento tinha um olhar tão meigo, que não me atrevi a meter o bico no seu sangue.
            Tudo corria bem na vida da Riscas. Tinha uma família, uma casa, uma cama quentinha e comida às horas certas. À noite dormia numa mantinha junto à cama do Huguinho e fazia grandes passeios pela praia. O que mais me chateava eram os banhos. Eu tinha grandes dificuldades em me segurar e toda aquela água fazia-me muita impressão. Mas acontece que o tempo foi passando e a Riscas cresceu. Ficou grandinha.
            Apesar do jardim da casa dos pais do Huguinho não ser pequeno, com a Riscas a crescer o espaço ia diminuindo. Uma vez que passou a estar muito tempo sozinha, a Riscas entretinha-se a roer as flores da mãe ou a cavar buracos na relva que o pai cuidava com tanto cuidado.
            A certa altura a mãe e o pai começaram a ralhar com a Riscas, a bater-lhe com o chinelo e a deixarem-na na rua, à chuva e ao frio. Era o castigo pelos disparates que fazia, diziam-lhe eles. Como não estava habituada, a Riscas chorava muito e muito alto. Não demorou até os vizinhos começarem a queixar-se.
             Um dia aconteceu o que eu menos queria. Andava eu a passear pelo jardim quando vi o pai e a mãe a saírem do carro e a chamarem pela Riscas. Traziam a trela na mão. Achei estranho! Afinal, nem o pai nem a mãe passeavam a Riscas fazia muito tempo. Nessa altura o Huguinho estava na escola. Sempre pensei que fossem levar a cadela ao veterinário, mas vim a perceber que não.
            Dei uma corrida e meia-dúzia de pulos, agarrando-me à perna esquerda da frente da minha cadela preferida. Quase caía!

            Quando chegou junto ao pai, ele prendeu-lhe a trela na coleira. Disse-lhe:
            - Vamos passear, Riscas!
            A mãe aproximou-se da cadela e, passando-lhe a mão sobre a cabeça, disse:
            - Desculpa Riscas, mas fazes tanta bagunça!
            Não gostei nada do tom de voz da mãe. E mais estranho foi quando verifiquei que a mãe não viria passear connosco.
            O pai abriu o porta-malas do carro e a Riscas entrou. Fizemos uma viagem de mais de uma hora, até que o carro do pai parou. Ele abriu a porta e eu e a Riscas saímos. O pai atirou uma bola, diversas vezes, para a Riscas ir buscar. Porém, numa das vezes, quando regressamos com a bola, o pai já lá não estava; nem o pai, nem o carro dele. A Riscas tinha acabado de ser abandonada à sua sorte.
            Assustada, a cadela ladrou, uivou e ganiu. Correu para um lado e para o outro. Estava a chamar o pai. Queria ir para casa. Mas o pai nunca apareceu.
            Dei-lhe um abraço.

            Durante muitos dias andamos perdidas pela rua, ao frio, à chuva, ao calor. Não havia nada para comermos e sempre que a Riscas se aproximava de alguém, era enxotada ou atiravam-lhe pedras. A pobrezinha fugia a ganir com a cauda entre as pernas e só parava quando já estava bastante longe
            Com o passar dos meses, começamos a ficar muito magrinhas e debilitadas. Tive vontade de chorar! A minha Riscas, que só queria brincar e carinho, estava a ficar muito fraquinha. Pensei que iriamos acabar por morrer, as duas.

            Mas um dia, quando já não tínhamos esperança, estava a Riscas deitada num jardim de rua, a sentir-se muito fraquinha, vimos surgir um menino. Trazia pão na mão. Aproximou-se da Riscas e ofereceu-lho. A Riscas, cuidadosamente, segurou no pão que o menino lhe ofereceu. Calmamente, comeu-o.

            Atrás do menino apareceram os seus pais. Tal não foi o meu espanto quando começaram a acarinhar à Riscas. Primeiro com muito cuidado, com medo que ela lhes mordesse, mas depois já mais próximos da minha amiga.

            Ao perceberem que estava fraquinha, o pai do menino pegou na Riscas ao colo e levou-a. Ela mostrou-se sossegadita e olhou-o ternamente, agradecendo. Ele meteu-a dentro do carro e levou-a ao veterinário. Deram-lhe vacinas e trataram-lhe de uns ferimentos que já tinha na pele. A Riscas começou a acreditar que a vida podia melhorar e com o passar do tempo foi ganhando forças e vontade, novamente, de brincar.

            Os dias que se seguiram foram maravilhosos. A família a tratar da Riscas, recuperando-a, dando-lhe carinho, alimentando-a, brincando e fazendo algo que ela muito gosta mas que eu, sua hospedeira, detesto; os novos donos da Riscas davam-lhe banho. Todos os meses lhe davam banho. Só eu sei o que sofri. Não percebo por que tinha de tomar tantos banhos. Eu não tomo banho.

            O que sei é que a Riscas aprendeu coisas novas e que o menino que a encontrou, o Pedrito, gosta muito dela. Um dia ouvi os pais a comentarem, um com o outro, que desde que tinham adotado a cadela, que o Pedrito estava mais calmo e social; não sei o que isso quer dizer, mas deve ser bom, porque o Pedrito ria muito e parecia-me bastante divertido.

            Hoje já não estou com a Riscas. Aqueles banhos não me andavam a fazer bem. Mas continuo a ser amigo dela e acima de tudo estou muito feliz por ela ter uns novos donos que a tratam tão bem.
            Ah! Já me esquecia de vos dizer; a Riscas já não é Riscas; tem um nome novo. Agora a Riscas chama-se Boneca.
            … e vive muito feliz!


FIM

Miguel Branco

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