Era uma vez…
Lembro-me do dia em que a Riscas chegou lá a casa. Foi
num domingo, estava sol e fazia calor. Eu estava na minha vida, a passear pelo
jardim, quando o pai chegou de carro. O Huguinho, um menino de sete anos de
idade, como era seu hábito, também por ali andava, a correr, a pular e a jogar
à bola. Ao ver o pai chegar, o rapazito deu uma valente corrida, saltando-lhe
para o colo, dando-lhe uma enorme beijoca.
- Onde está? Onde está? – perguntava, todo excitado.
- Calma, Huguinho! – disse-lhe o pai, tentando controlar
o impulso do filho.
- Onde está? Onde está? – continuava impaciente.
O pai, o senhor Francisco, abriu a porta detrás do carro
e, do seu interior, retirou uma caixa de papelão. Fiquei curiosa a olhar para aquela
enorme caixa e a tentar perceber o que ali vinha dentro. Quando a pousaram no
chão, reparei que o senhor Francisco se debruçou no seu interior. Ao
levantar-se… lá estava ela! - «Comida!» - pensei, enquanto babava.
- É tão linda! – disse o Huguinho.
- Gostas? – perguntou o pai.
- Sim! – respondeu excitado, o rapazinho.
- É para ti. – disse-lhe o pai.
- Viva! Viva! – ficou radiante com a sua nova amiga – Vou
chamar-lhe “Riscas”. – disse.
- Riscas? – questionou a mãe, que entretanto chegara.
- Sim, Riscas! Olha o pêlo dela. Todo às riscas.
E assim ganhou a “Riscas” o seu nome.
A Riscas era uma cadela muito ativa. Como qualquer
cachorro bebé, também a Riscas só queria brincar. A cadelita corria, saltava e
rebolava pelo jardim. O Huguinho sempre atrás dela, era a felicidade em pessoa.
Eu também adorei aquela cadela; primeiro porque
significava comida e depois porque era, realmente, muito bonita e divertida.
Acabei igualmente por adotar a Riscas e passei a andar sempre com ela, nas
corridas, nas brincadeiras, nos passeios e nos sonos.
Aquele fantástico alimento tinha um olhar tão meigo, que
não me atrevi a meter o bico no seu sangue.
Tudo corria bem na vida da Riscas. Tinha uma família, uma
casa, uma cama quentinha e comida às horas certas. À noite dormia numa mantinha
junto à cama do Huguinho e fazia grandes passeios pela praia. O que mais me
chateava eram os banhos. Eu tinha grandes dificuldades em me segurar e toda
aquela água fazia-me muita impressão. Mas acontece que o tempo foi passando e a
Riscas cresceu. Ficou grandinha.
Apesar do jardim da casa dos pais do Huguinho não ser
pequeno, com a Riscas a crescer o espaço ia diminuindo. Uma vez que passou a
estar muito tempo sozinha, a Riscas entretinha-se a roer as flores da mãe ou a
cavar buracos na relva que o pai cuidava com tanto cuidado.
A certa altura a mãe e o pai começaram a ralhar com a
Riscas, a bater-lhe com o chinelo e a deixarem-na na rua, à chuva e ao frio. Era
o castigo pelos disparates que fazia, diziam-lhe eles. Como não estava
habituada, a Riscas chorava muito e muito alto. Não demorou até os vizinhos
começarem a queixar-se.
Um dia aconteceu o
que eu menos queria. Andava eu a passear pelo jardim quando vi o pai e a mãe a saírem
do carro e a chamarem pela Riscas. Traziam a trela na mão. Achei estranho!
Afinal, nem o pai nem a mãe passeavam a Riscas fazia muito tempo. Nessa altura
o Huguinho estava na escola. Sempre pensei que fossem levar a cadela ao
veterinário, mas vim a perceber que não.
Dei uma corrida e meia-dúzia de pulos, agarrando-me à
perna esquerda da frente da minha cadela preferida. Quase caía!
Quando chegou junto ao pai, ele prendeu-lhe a trela na
coleira. Disse-lhe:
- Vamos passear, Riscas!
A mãe aproximou-se da cadela e, passando-lhe a mão sobre
a cabeça, disse:
- Desculpa Riscas, mas fazes tanta bagunça!
Não gostei nada do tom de voz da mãe. E mais estranho foi
quando verifiquei que a mãe não viria passear connosco.
O pai abriu o porta-malas do carro e a Riscas entrou.
Fizemos uma viagem de mais de uma hora, até que o carro do pai parou. Ele abriu
a porta e eu e a Riscas saímos. O pai atirou uma bola, diversas vezes, para a
Riscas ir buscar. Porém, numa das vezes, quando regressamos com a bola, o pai
já lá não estava; nem o pai, nem o carro dele. A Riscas tinha acabado de ser
abandonada à sua sorte.
Assustada, a cadela ladrou, uivou e ganiu. Correu para um
lado e para o outro. Estava a chamar o pai. Queria ir para casa. Mas o pai
nunca apareceu.
Dei-lhe um abraço.
Durante muitos dias andamos perdidas pela rua, ao frio, à
chuva, ao calor. Não havia nada para comermos e sempre que a Riscas se
aproximava de alguém, era enxotada ou atiravam-lhe pedras. A pobrezinha fugia a
ganir com a cauda entre as pernas e só parava quando já estava bastante longe
Com o passar dos meses, começamos a ficar muito magrinhas
e debilitadas. Tive vontade de chorar! A minha Riscas, que só queria brincar e
carinho, estava a ficar muito fraquinha. Pensei que iriamos acabar por morrer,
as duas.
Mas um dia, quando já não tínhamos esperança, estava a
Riscas deitada num jardim de rua, a sentir-se muito fraquinha, vimos surgir um
menino. Trazia pão na mão. Aproximou-se da Riscas e ofereceu-lho. A Riscas,
cuidadosamente, segurou no pão que o menino lhe ofereceu. Calmamente, comeu-o.
Atrás do menino apareceram os seus pais. Tal não foi o
meu espanto quando começaram a acarinhar à Riscas. Primeiro com muito cuidado,
com medo que ela lhes mordesse, mas depois já mais próximos da minha amiga.
Ao perceberem que estava fraquinha, o pai do menino pegou
na Riscas ao colo e levou-a. Ela mostrou-se sossegadita e olhou-o ternamente,
agradecendo. Ele meteu-a dentro do carro e levou-a ao veterinário. Deram-lhe vacinas
e trataram-lhe de uns ferimentos que já tinha na pele. A Riscas começou a
acreditar que a vida podia melhorar e com o passar do tempo foi ganhando forças
e vontade, novamente, de brincar.
Os dias que se seguiram foram maravilhosos. A família a
tratar da Riscas, recuperando-a, dando-lhe carinho, alimentando-a, brincando e
fazendo algo que ela muito gosta mas que eu, sua hospedeira, detesto; os novos
donos da Riscas davam-lhe banho. Todos os meses lhe davam banho. Só eu sei o
que sofri. Não percebo por que tinha de tomar tantos banhos. Eu não tomo banho.
O que sei é que a Riscas aprendeu coisas novas e que o
menino que a encontrou, o Pedrito, gosta muito dela. Um dia ouvi os pais a
comentarem, um com o outro, que desde que tinham adotado a cadela, que o
Pedrito estava mais calmo e social; não sei o que isso quer dizer, mas deve ser
bom, porque o Pedrito ria muito e parecia-me bastante divertido.
Hoje já não estou com a Riscas. Aqueles banhos não me
andavam a fazer bem. Mas continuo a ser amigo dela e acima de tudo estou muito
feliz por ela ter uns novos donos que a tratam tão bem.
Ah! Já me esquecia de vos dizer; a Riscas já não é
Riscas; tem um nome novo. Agora a Riscas chama-se Boneca.
… e vive muito feliz!
FIM
Miguel Branco
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