sábado, março 11, 2017

# Este tecto não é meu - A relação com o pai


- Qual é a tua relação com o teu pai?
- A minha relação com o meu pai? Não se pode dizer que tenha havido uma relação entre nós os dois. Tipo… pai e filho, estás a ver! Foi apenas aquela cena do sangue e do nome. Penso, muitas vezes, agora à distância, que ele me fez, apenas, para mostrar à sociedade merdosa onde sempre se movimentou e que acabou por o desprezar, que era capaz de fazer um filho. – olhou o infinito, primeiro, depois olhou Cristóvão – Esqueceu-se foi que também deveria saber educa-lo. E acredita, meu amigo, educar um filho não é carregar-lhe os bolsos de dinheiro, colocar-lhe uma farpela de marca sobre o lombo, todo lindinho e já está. E o afecto? E o carinho? E a atribuição da responsabilidade? Onde ficou aquele abraço e beijo ao deitar?

- Sentes falta desse abraço?
- Talvez… talvez não! Tenho a certeza que esse abraço e esse beijo que me pertenciam foram entregues àquelas rameiras a quem ele pagava e presenteava com colares, jantares, viagens, semanas em Resorts de Luxo… foi para elas, o meu abraço.
- Sabes que há muitos homens de negócios que andam metidos com outras mulheres, ocasionalmente, ou têm amantes.
- Sim é verdade! Há muitos homens que andam com outras mulheres ou têm amantes fixas, que as sustentam e lhes proporcionam vidas faustosas, principescas, por vezes em troca de apenas umas fodas e umas mamadas. E quando as deixam para regressarem às suas famílias de origem, esses homens são corneados pelas suas amantes. No caso daquele que a lei diz ser meu pai…ou pelo menos progenitor, prefiro vê-lo assim, fodeu-se com a brincadeira.
- Então?
- Olha, andou metido com uma gaja que lhe sacou dois milhões de euros,
- Dois milhões!
- Ah, pois é! Ouviste bem. Dois milhões de pastel. Hoje a tipa tem um vidão do caralho  e o totó, esse, anda numa vidinha miserável. Também contribuí, é verdade, mas foda-se… o gajo nunca quis saber de mim. A minha mãe, tantas vezes lhe disse que ele andava metido com putas e no álcool. Ele, cheio de moral, acusava-a de ser a responsável de isso estar a acontecer.
- A sério?
- É verdade! O tipo nunca teve uma postura de pai nem de marido. O facto de fazer da minha mãe uma dondoca e de mim um puto fútil, para ele, era ser pai e marido.
- Mas isso está errado.
- Claro que está errado! Escuta, um dia cheguei a casa todo fudido da cabeça, com uma moca de heroína e o tipo ao ver-me naquele estado virou-se para a minha mãe e acusou-a de ser a responsável, uma vez que a única coisa que ela fazia na vida era cuidar de mim, já que era ele que punha dinheiro em casa. Que nem isso ela sabia fazer. Chamou-lhe incompetente, inútil, bateu-lhe e saiu de casa, aos gritos, feito parvo, a dizer «Agora atura tu esse imbecil do teu filho.».
- E o que fizeste?
- O que fiz? Mostrei-lhe que inútil era ele.
- Como fizeste isso?
- Como? Nessa altura deveria ter uns dezanove anos de idade. Apanhei o tipo a dormir e saquei-lhe o livro de cheques. Andei toda a minha juventude e adolescência a treinar a assinatura dele. Treinei-a bastante a perfeiçoei-me em fazê-lo. – sorriu – Pimba! Assinei uns quantos cheques e fui trocá-los. Depois, passei uns quantos mais e fui oferecê-los a instituições de caridade.
- E ele não deu conta da situação?
- Sim, deu conta da situação quando o banco lhe telefonou a informar que tinha pouco mais de cinquenta mil paus na sua conta pessoal. O homem passou-se! Um dia cheguei a casa e ele estava a bater mal. Caminhava de um lado para o outro. Quando entrei, atirou-se a mim, que o tinha roubado e essas merdas. Que ia apresentar queixa de mim à polícia e que me enfiava na prisão, que ia lá apodrecer e essas merdas.- sorriu – Mais tarde, como já te contei, foi-me de lá tirar. Ele nunca foi um verdadeiro pai.
- E o dinheiro?
- O dinheiro? Ganharam as instituições, ganhei eu, perdeu ele. Mas nem mesmo assim deixou as gaijas.
- E chegou a apresentar queixa?
- Se chegou a apresentar queixa? Claro que não! Que queixa iria ele apresentar se os cheques estavam assinados por si?
- Mas podia argumentar que as assinaturas eram falsas.
- Estavam perfeitas, acredita! Não tinha como conseguir provar que tinha sido eu. Depois ainda havia a questão da sociedade e essas merdas todas.
- E que fez ele?
- Deixou de me falar, o que para mim não fez diferença nenhuma, uma vez que já estava habituado a não ter a sua presença na minha vida activa. Escuta, uma vez sentou-se ao meu lado para me ajudar a fazer uma conta num trabalho de casa. Uma vez! Se fiz, se aprendi o que aprendi, foi tudo à minha custa. Nunca tive uma explicadora, nada!
- E a tua mãe?
- A minha mão? – sorriu – A minha mãe tem o sexto ou sétimo ano de escolaridade. Casou-se com um gajo de guito e não quis saber mais de estudos. – o tom de voz mostrava amargura.
- Isso entristece-te?
- Se me entristece? Sim entristece e revolta-me.- abanou negativamente a cabeça – Revolta-me. É claro que lhe estou grato por me ter tirado da cadeia. Mas jamais lhe perdoarei o facto de não ter contribuído afectivamente para a minha educação. Não a académica, mas sim a social, sentimental… - virou-se de frente para Cristóvão, pousando os antebraços sobre a mesa e com o dedo indicador em riste - … preferia não ter tido noventa por cento do que tive, a nível de bens e ter tido um pai e uma mãe activos, presentes, que me soubessem ter dito “não” e me tivessem proibido de fazer tantas merdas. Se assim tivesse sido, hoje eu era uma pessoa com rumo, afectivamente estável.
- Mas és uma pessoa educada.
- Sou educado? Sabes que a determinado momento da minha vida, algum tempo após ter saído da pildra, estive quase a bater as botas.
- A morrer?
- Yá! A morrer. E tive medo. Passou-me a vida toda pela frente.
- E choraste?
- Se chorei? Ainda hoje choro, Cristóvão. Choro em silêncio e quando sei que ninguém me está a ver.
- E já pensaste em procurar ajuda?
- Pensar em procurar ajuda?
- Sim um psicólogo.
- Um psicólogo? Já passei algum tempo com um psicólogo e uma psicóloga.
- E então?
- Desisti! Vêm com aquelas merdas que leem nos livros e não conhecem a realidade da cena. Amigo, já estive dos dois lados.
- Mas eles têm estudos.
- Yá! É verdade que têm estudos. Sei o que é isso. Mas a teoria é uma coisa e a prática é outra. Na faculdade não preparam os chavalos para o que realmente se passa, estás a ver?
- Não será bem assim, Aurélio!
- Achas que não! Diz-me quantos estudantes de psicologia ou futuros assistentes sociais vês a andarem nas ruas a acompanhar os sem-abrigo, a tentarem ajudá-los ou simplesmente perceber o que os afecta emocionalmente e psicologicamente?
Cristóvão olhou-o em silêncio.

- Pois, nenhum! Mais… quando defendem que cada caso é um caso, são tretas. Eles falam bem de caralho e dizem que nos querem ajudar, mas eu não percebo como o querem fazer se não vierem para o terreno sentir… sentir, amigo, não é ver, é sentir o que um sem-abrigo, que não escolheu sê-lo e não pensa nas estatísticas, passa e sente. Dizem umas cenas e no final do tempo da consulta «Pense no que falamos, senhor Aurélio. Verá que as coisas mudam para melhor.». Acabou a consulta, vão à sua vida e esquecem-se que lá vamos nós, outra vez, para a arena e temos de nos safar. O que realmente gostava de ver era esses senhores doutores virem ter connosco, à noite. Dormirem na rua e fazerem da calçada colchão. Na rua anda gente que não sabe nem nunca saberá, certamente, o que é receber o que quer que seja. Aqui, no underground tudo se negoceia. – fez uma pausa, passou as mãos pelos cabelos. Cristóvão limitava-se a escutá-lo – Companheiro… aqui negoceia-se um papelão para cobrir do frio, por um pedaço de pão rijo. Aqui guarda-se metade de uma maçã, para se ter alguma coisa que se coma no dia seguinte. Aqui, na rua, morre-se sem identidade, sem piedade, sem humanidade… aqui morre-se sem dignidade, meu amigo. Temos todos a mesma identidade, somos todos indigentes.- fez uma pausa – E qualquer ser humano tem direito à sua dignidade.- respirou fundo, tentou acalmar-se.

Este tecto não é meu - Miguel Branco

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