domingo, novembro 10, 2019

Ensaio - A amizade que há em cada eu


Fazer uma reflexão sobre o que é a amizade, a menos de seis meses de completar meio século de vida, pode parecer, a alguns seres, um exercício especulativo, a outros uma teoria da conspiração, a certos uma verdade difícil de aceitar e para mim nada mais será do que uma constatação de quase cinquenta anos de vida; é um exercício de análise – a minha análise – após avaliação despreconceituosa de experiências vividas ao longo do caminho. Desenganem-se aqueles que pensam que eu penso que a minha verdade é um absolutismo. Nada disso! A minha verdade será sempre a minha verdade, baseada em factos – que até estes nunca são absolutos – observados do meu miradouro. O que para mim é um 6, para outros pode ser um 9.


            Poderá a amizade ser uma inutilidade, ou deverá a amizade ser para as ocasiões?  - Muitos dirão, tal como o provérbio, que sim, que os amigos – ou a amizade – são/é para as ocasiões. Pois eu penso exactamente o contrário; os amigos têm de ser – para nós – o mais inúteis possível, assim como a amizade. Porque se assim não for, então a amizade e os seus proprietários estão integrados num contexto utilitarista em que a tal “ocasião” vai ser registada num livro de apontamentos mental e, na “ocasião” oportuna, vai ser aflorada como símbolo de cobrança; e na cobrança está sempre implícito um valor. E desta forma, se há uma cobrança, a amizade ou o amigo passaram a ter uma utilidade, logo um valor de troca; este sentimento não é de amizade virgem, mas sim de amizade prostituída à expectativa do retorno.

            Explica a ciência que, desde a nossa vida intrauterina, a criação de redes sociais ao nível emocional é uma realidade. Aí, claro, com principal evidência com os progenitores – mais com a mãe do que com o pai, até porque muitos dos progenitores masculinos creem que é uma patetice falar para uma barriga que se encontra em crescimento, sabendo que não há retorno. – Redes sociais que se vão expandindo após o nascimento e que se tornam mais amplas – extra circulo familiar – quando as crianças frequentam infantários. O desenvolvimento cognitivo socioemocional é superior e iniciam-se expectativas de amizade – primeiro pelos pais, com os habituais preconceitos à mistura, mas posteriormente pelas crianças. Ao longo da vida infantil e adolescência, essas redes de amizade expandem-se – de acordo com as experiências vividas em comunidade – e as expectativas sobre as mesmas aumentam exponencialmente, levando os jovens a acreditarem numa amizade segura e consistente, intencional e quase comprometida com pactos de sangue.São crenças que àquela idade são invioláveis, impossíveis de romper, incapazes de algum dos amigos quebrar. E assim é até ao momento onde começam a surgir os relacionamentos amorosos mais sérios e os afastamentos começam a dar-se. Não por responsabilidade desse afastamento, mas porque se começam a colocar em causa pontos confluentes, tornando-os em divergentes.

            Neste quase meio século de vida, fazendo uma retrospectiva de ocorrências percebo, que mais do que as amizades de infância – cujo afastamento se ficaram a dever a mudanças geográficas – são as amizades de adolescência e já de vida adulta que me deixam um acre no sentimento; constatar que afinal o que pensávamos ser uma amizade bem sedimentada, não passava de um conhecimento amorfo e mascarado com o enfeite do Joker.

            Poderemos ser amigos de quem não é nosso amigo? Poderemos ter amigos de quem não somos amigos? Para ser-se amigo, tem de se estar sempre presente? A amizade diz-se ou demonstra-se? Estas são algumas questões que  nos podem ou devem levar a uma auto-reflexão em busca de respostas concretas, pessoais, imparciais, pragmáticas e descomprometidas.

            Quanto a mim, apesar da desilusão e da frustração me terem atingido, tenho maturidade suficiente para perceber e poder afirmar que posso – sou – ser amigo de quem não é meu amigo, mas que julga ser ou tenta transmitir que é. Assim como ter – sei que tenho – amigos de quem não sou amigo – ainda – mas que não invalida que não o possa vir a ser. Existem amizade que apenas se percebem quando ocorrem e não quero com isso dizer que se prolongam. Se alguém vir um pobre na rua, faminto, e lhe disponibilizar alguma comida, não está esse alguém a praticar um acto de amizade? – Eu afirmo que sim. Quem vai doar sangue a alguém que nem conhece, não está a praticar um acto de amizade? – Eu afirmo que sim. E quando aquele “amigo” quer um favor nosso e faz questão de nos lembrar que, em algum dia, também ele nos fez um favor? Será esta uma postura de amizade? – Eu afirmo que não! E quando necessitamos da inutilidade do “amigo” e ele se afasta, convicto que vamos querer converter essa inutilidade em utilidade, será uma amizade o que ali temos? – Respondo que não!

            Na amizade não há inveja, não há opulência, auto-elogio. A amizade é singela, humilde, despida e nua. A amizade é a partilha e não a imposição ou exigência. É um copo de vinho brindado com um copo de leite. É a reunião onde são recordados tempos idos, sem comissão, e não um presente onde apenas conta e prevalece a riqueza ostentada. A amizade é o abraço de olhos vendados sem facas nas mãos, é o uso das palavras sem procura, é estar, não estando. A amizade é transparente, não tem distâncias, não ocupa espaço e não gasta tempo. A amizade pode ser uma desilusão, pode até ser uma ilusão, mas principalmente a amizade é espectacular.

            Quanto a mim, sinto-me tranquilo por conseguir identificar os “amigos”  - e não os vou dizer, cada um lá se saberá, ou não, avaliar - e feliz quando percebo um acto de amizade por mim, não conhecendo o espécime.

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