quinta-feira, abril 02, 2020

Ensaio sobre o amor - 11

(continuação)


A resposta de Armando fomentou em Matilde um sentimento de culpa, de raiva, de angústia, de revolta e de frustração. Passou a mão pela cabeça do jovem e, afagando-lhe o cabelo, afastou-se, impotente, dizendo-lhe apenas:
-Se necessitares de alguma coisa, chama-me. Está bem? - recebendo um sinal de afirmação com um movimento de cabeça, vindo do pequeno Armando.
Ficou a observá-lo a trabalhar. Num encanto de admiração, observou-o a tactear a folha desde o pecíolo à ponta do limbo. Fê-lo uma, duas, três vezes. Observou a técnica como libertava os veios da folha do limbo, deixando-a em esqueleto, despida.
Percebeu que murmurava algo com a pequena Margarida; certamente solicitava-lhe alguma ajuda, ao que esta correspondeu, colocando algumas pontas de cola na armação da folha, colando-a ao papel.

Verificou como o rapaz, com um lápis, desenhou o corpo da folha repleto de figuras humanas. Um desenho milimétrico.
            Quando concluiu, fez sinal a Matilde, informando-a da finalização do trabalho. Uma vez que o tema era o Outono, a professora pedira aos alunos que dessem um título aos seus trabalhos.
Chegando-se a Armando, observou o seu trabalho e questionou-o;
            -Que título lhe pretendes dar?
            -A vida no amor, senhora professora!
            Matilde não percebera o alcance que Armando pretendia com aquele título e questionou-o nesse sentido, ansiosa pela resposta que aquela criança, com uma vida muito singela e fechada numa localidade como Azinhaga, lhe poderia prestar.
            -Sabe, senhora professora… - fez uma pequena pausa, ficando de olhar no infinito que terminava onde a sua cabeça desejasse, mas que para qualquer um seria a parede do quadro da sala - …eu sei que existe uma coisa que se chama luz, mas não lha sei explicar. Sei também que existe uma coisa que se chama escuridão, mas não a consigo entender. Sei que existe alguma coisa a quem chamam cores, mas não consigo perceber o que é. – fez uma pequena pausa– Dizem-me que o céu é azul e o sol amarelo, que as árvores são castanhas e as folhas verdes. Dizem-me que o trigo é dourado e a terra castanha. Sei que a escola e a igreja são brancas, mas não faço ideia o que isso quer dizer. Sei o que é o barulho e o silêncio, conheço as árvores, os animais e as pessoas. Conheço as alfaces que o meu pai tem plantado na horta e o feijão. – nova pausa, estando já a professora com uma pequena lágrima na extremidade do olho – Dizem-me que o que vejo é o escuro, o negro, mas na verdade eu não vejo, não sei o que é o escuro, o negro… não sei! Na minha cabeça, cá dentro, idealizo o relevo do que sinto com as mãos e os pés. Mas se me perguntar se tem cor, não lhe poderei dizer, pois não a conheço. Mas conheço a amizade e o amor. A senhora professora é minha amiga… sinto que é. Assim como o são a Margarida, o Tomás, o Artur, a Maria e todos os outros. São meus amigos. – tinha na voz um tom nostálgico, de saudade e agradecimento – Ajudam-me, entendem-me, apoiam-me. E como a senhora professora diz que as árvores, através das folhas dão vida, o meu trabalho é isso mesmo… - nova interrupção - …eu sou os veios e os meus amigos são o limbo, a vida que me dão, a sua amizade e amor. – respondeu e manteve-se de seguida em silêncio.
            Matilde não se conteve e deu-lhe um abraço, já com as lágrimas a abaterem-se pela face. Chamou todos os meninos para junto de si e, dando novo abraço, agora com todos os alunos juntos, foi-lhes dizendo;
            -Meninos, a vossa amizade e amor deve superar os bens materiais e as intrigas. Devem ser sempre assim, amigos, unidos.

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