A
resposta de Armando fomentou em Matilde um sentimento de culpa, de raiva, de
angústia, de revolta e de frustração. Passou a mão pela cabeça do jovem e,
afagando-lhe o cabelo, afastou-se, impotente, dizendo-lhe apenas:
-Se necessitares de alguma coisa,
chama-me. Está bem? - recebendo um sinal de afirmação com um movimento de
cabeça, vindo do pequeno Armando.
Ficou a observá-lo a trabalhar. Num
encanto de admiração, observou-o a tactear a folha desde o pecíolo à ponta do
limbo. Fê-lo uma, duas, três vezes. Observou a técnica como libertava os veios
da folha do limbo, deixando-a em esqueleto, despida.
Percebeu que murmurava algo com a pequena
Margarida; certamente solicitava-lhe alguma ajuda, ao que esta correspondeu,
colocando algumas pontas de cola na armação da folha, colando-a ao papel.
Verificou como o rapaz, com um lápis,
desenhou o corpo da folha repleto de figuras humanas. Um desenho milimétrico.
Quando concluiu, fez sinal a
Matilde, informando-a da finalização do trabalho. Uma vez que o tema era o
Outono, a professora pedira aos alunos que dessem um título aos seus trabalhos.
Chegando-se a Armando, observou o seu
trabalho e questionou-o;
-Que título lhe pretendes dar?
-A vida no amor, senhora professora!
Matilde não percebera o alcance que
Armando pretendia com aquele título e questionou-o nesse sentido, ansiosa pela
resposta que aquela criança, com uma vida muito singela e fechada numa
localidade como Azinhaga, lhe poderia prestar.
-Sabe, senhora professora… - fez uma
pequena pausa, ficando de olhar no infinito que terminava onde a sua cabeça
desejasse, mas que para qualquer um seria a parede do quadro da sala - …eu sei
que existe uma coisa que se chama luz, mas não lha sei explicar. Sei também que
existe uma coisa que se chama escuridão, mas não a consigo entender. Sei que
existe alguma coisa a quem chamam cores, mas não consigo perceber o que é. – fez
uma pequena pausa– Dizem-me que o céu é azul e o sol amarelo, que as árvores
são castanhas e as folhas verdes. Dizem-me que o trigo é dourado e a terra
castanha. Sei que a escola e a igreja são brancas, mas não faço ideia o que
isso quer dizer. Sei o que é o barulho e o silêncio, conheço as árvores, os
animais e as pessoas. Conheço as alfaces que o meu pai tem plantado na horta e
o feijão. – nova pausa, estando já a professora com uma pequena lágrima na extremidade
do olho – Dizem-me que o que vejo é o escuro, o negro, mas na verdade eu não
vejo, não sei o que é o escuro, o negro… não sei! Na minha cabeça, cá dentro,
idealizo o relevo do que sinto com as mãos e os pés. Mas se me perguntar se tem
cor, não lhe poderei dizer, pois não a conheço. Mas conheço a amizade e o amor.
A senhora professora é minha amiga… sinto que é. Assim como o são a Margarida,
o Tomás, o Artur, a Maria e todos os outros. São meus amigos. – tinha na voz um
tom nostálgico, de saudade e agradecimento – Ajudam-me, entendem-me, apoiam-me.
E como a senhora professora diz que as árvores, através das folhas dão vida, o
meu trabalho é isso mesmo… - nova interrupção - …eu sou os veios e os meus
amigos são o limbo, a vida que me dão, a sua amizade e amor. – respondeu e
manteve-se de seguida em silêncio.
Matilde não se conteve e deu-lhe um
abraço, já com as lágrimas a abaterem-se pela face. Chamou todos os meninos
para junto de si e, dando novo abraço, agora com todos os alunos juntos,
foi-lhes dizendo;
-Meninos, a vossa amizade e amor
deve superar os bens materiais e as intrigas. Devem ser sempre assim, amigos,
unidos.
Sem comentários:
Enviar um comentário