quinta-feira, junho 21, 2012

António

Hoje, mais um dia igual a tantos outros, uma repetição dramática que apenas eu conheço.Mais um dia vagabundo de incertezas concretas.

Hoje, um acordar já sem fome de uma refeição que não sei se vou ter. Um caminhar doentio na procura da migalha misericordiosa que almejo a cada dia.

Hoje, como ontem e no mês passado e no ano passado, caminho descalço pelo trilho que já não me queima ou sangra os pés, não me marca a alma, não me dá esperança.


Hoje, tal como ontem, aguardo que aquele minha gémea alma, tão igual mas tão distinta, arremesse fora um pedaço de pão, maldito pão, maldita fortuna que me escolheu e se entranhou.

Hoje, como em tantos dias que não sei contar, escrever ou falar, saí de casa, se é que casa se pode chamar a um pedaço de tecido no lixo encontrado, estendido e amarrado debaixo da ponte, onde duas caixas de velho cartão fazem de cama, de mesa, de sofá, de aconchego.

Saí então...de casa, dirigindo-me a lado nenhum, percorrendo tantos sítios. Gostava de saber ler e escrever, mas nunca fui à escola. Gostava de saber falar. Falar com preceito, bom prumo. Nunca tive um livro ou um brinquedo.

Seria tão bom jogar à bola com outros meninos. Mas quando apareço, os outros meninos ao me verem fogem. Fogem do que não conhecem, às costas da ignorância de seus pais. Riem-se de mim ao longe. Mas afinal, de que se riem? Que tenho eu de tão engraçado que promova tal reação? A mim parece-me que se riem de medo, insegurança e incerteza num futuro. Receio de perderem.

às vezes noto que há meninos que me olham com pena. Parece quererem aproximar-se desta pobre alma mal cheirosa que não sabe o que é um banho, senão o da chuva. Desta alma que viaja nas ruas sem fim, em aventuras inúmeras.  Desta figura queimada pelo sol, ressequida pelo frio, pés sola de calo, mãos encardidas e roupa rasgada e desbotada.

São meninos com coração de amor, mas que preconceitos sociais não os deixam estravazar a emoção, as sensações e ajudar, acarinhar e amar alguém como eu, que na vida a mim me tenho, pois a idade não sei e o nome, esse apenas conheço aquele pelo qual me chamam... António!

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