Ser um sem-abrigo não é uma forma de estar na vida e jamais
deverá ser um hábito de vida. Ser um sem-abrigo é, para muitas pessoas, a
batida no fundo de um poço seco sem rede de apoio ou arnês de suporte, é a
descrença num futuro melhor, a humilhação social, o início da atroz epopeia sem
meta anunciada ou face identificada.
Pode,
também, pensar-se que ser um sem-abrigo jamais será, para alguém, uma opção de
vida. Pensarão assim, essencialmente, os que dão primário valor aos bens materiais,
à ostentação social e ao status. Mas estão errados, esses pensamentos. Há quem
se entregue à condição, levados pelas maiores variedades de razões, muitas
delas traiçoeiras de uma vida que para alguns deixa de fazer sentido, no
alinhamento tipo de uma sociedade desenvolvida.
Quando
abordamos este tema tão sensível como é o dos sem-abrigo, surgem de imediato
duas questões pertinentes; quantos são os sem-abrigo em Portugal e o que é que
se faz para combater tão nefasto fenómeno social?
Peguei
no telefone e tentei obter resposta a estas e outras tantas questões que me
foram surgindo, em catadupa, na minha inquietude. As respostas obtidas foram
vagas, vazias de conteúdo e nada concretas. Estimavam as informações obtidas
que, em Portugal, seriam cerca de 5000 os sem-abrigo e que, o que se vai
fazendo, nada é para terminar com o fenómeno, mas sim e apenas para minimizar
as consequências de quem por ele foi arrebatado.
Tem
consciência a Segurança Social que os valores apresentados estarão muito aquém
da realidade e que é graças à boa vontade de dezenas de IPSS e seus voluntários
que, disponibilizando o seu tempo, permitem uma intervenção nas ruas, levando
alguma comida a quem nada tem ou tudo perdeu.
Não
satisfeito com estas e outras respostas, resolvi ir para o terreno e procurar
estórias contadas na primeira pessoa.
Lisboa é
uma biblioteca replecta de páginas por ler. Desconhecedor da realidade para lá
daquela que se encontra à vista de todos e que por muitos (maioria) é
desprezada, talvez por pudor ou simplesmente por um terror camuflado de estarem
a vislumbrar algum reflexo futuro, quis saber como é a vida de um sem-abrigo. O
seu dia-a-dia, se assim lhe podem chamar.
A Solidão
Uma das
marcas que caracteriza um sem-abrigo é a solidão. A profunda solidão. Chegam a
estar anos sem falar ou pelo menos sem conversar com alguém. Fecham-se numa
bolha apenas sua, impenetrável, inalcançável, isolando-se de tudo o que seja
ser humano ao seu redor. Deixam-se conduzir para um campo emocional altamente
degradado, sóbrio e longínquo que os leva, em casos mais extremos, ao suicídio.
As diferenças
Para o
comum, egoísta e egocêntrico, mortal, um sem-abrigo é muitas vezes confundido
com um pedinte ou com um toxicodependente. Mas a verdade é outra. Um pedinte ou
um toxicodependente pedem no discurso directo, sem pudor ou qualquer
constrangimento. Um sem-abrigo, quando mendiga, fá-lo no discurso indirecto,
nunca abordando o transeunte, mas aguardando que a sensibilidade e humanismo de
quem passa o leve a depositar uma moeda na pequena lata de salsichas, num boné
gasto pelo tempo ou na caixa de sapatos encontrada junto a um contentor do
lixo, quando buscava algo para comer.
Os
pedintes e os toxicodependentes, quando a noite cai, sabem que, grande parte
deles, têm um tecto que os aguarda, em melhores ou piores condições. O
sem-abrigo apenas sabe que, os únicos tectos que poderá encontrar, serão os de
alguns vãos de escadas o u acessos a edifícios, os tabuleiros de viadutos,
caixas de papelão ou em muitos casos o céu, umas vezes estrelado, outras
chuvoso.~
Coimbra dos meus amores
Senti,
após alguma investigação na capital Lisboa, procurar outras paragens, outras
estórias, algo que pudesse mexes com a altivez que cada um de nós ostenta,
ainda que em muitos casos de forma dissimulada e hipócrita. Escolhi a cidade de
Coimbra. Efectuei alguns contactos e consegui chegar à fala com um homem a quem
vou chamar de Aurélio. Um sem-abrigo que deambula pela cidade capital de
distrito, vende o jornal nos semáforos ou arruma carros. Não se considera
arrumador, fá-lo apenas para queimar algum tempo que diz não contabilizar.
De “riquinho” à rua
Encontrei-me
com Aurélio, um sem-abrigo de 39 anos de idade. Escolhi falar com Aurélio, pois
ele é um caso em que ser um sem-abrigo foi uma opção de vida. Mas nem sempre
foi assim. Quando em pequeno, Aurélio era conhecido como o “menino riquinho”.
Segundo me contou, tal devia-se ao facto de, desde tenra idade, os seus pais o
deseducaram, uma vez que, vindo ele do seio de uma família conimbricense abastada,
a exigência social do meio onde estavam integrados associada ao desinteresse
familiar de um pai ausente, prepotente e mulherengo, fez com que possuísse
elevadas quantidades de dinheiro nos bolsos. O acesso a todo tipo de
experiências estava facilitado e sem controlo de um adulto.
Confidencializou-me
que a sua opção de se tornar um sem-abrigo passou, também, pela dor de ter
abdicado de um grande amor num determinado período da sua vida.
O álcool e as drogas
Segundo
Aurélio, as más companhias, o álcool e as drogas surgiram de forma natural e um
estilo de vida de alto risco. «Quando
tens dinheiro nos bolsos, tens tudo e todos ao teu redor.», diz. Segundo
ele, o dinheiro fácil abriu-lhe portas que, de outra forma, jamais teria
acesso. Confessa ter participado, enquanto menor, em jogos de sorte e azar. «O dinheiro era a chave de entrada.»
Aurélio
esteve preso por tráfico internacional de droga, quando foi um correio de droga
e viu morrer diante dos seus olhos o seu melhor amigo. O irmão que nunca teve.
Foi no Sobral Cid, hospital psiquiátrico, que esteve internado a determinada
altura da sua vida. Desmoronou com a fortuna da família; «Juntamente com as
mulheres que o meu pai sustentava nas suas viagens de negócios.», diz, com
amargura na voz.
Hoje afirma
ter largado as drogas. Já o álcool, esse ainda lhe serve de cobertor,
principalmente nas noites mais frias. Amante de animais, faz-se acompanhar de
uma cadela que adoptou, a Luna, após a ter encontrado abandonada e amarrada a
um contentor do lixo. Segundo ele, tem na Luna a sua melhor companhia. E por
que assim é, vê-se muitos sem-abrigo sempre acompanhados de quem jamais os
abandonará.
A comunidade dos sem-abrigo
Não me
bastava o relato na primeira pessoa. Necessitava de algo mais próximo da
realidade, ainda que Aurélio ilustrasse bem a sua experiência de mais de década
e meia, arrebatadora, replecta de emoções, sensações e sentimento. Fizera de
tal forma intenso este seu relato, que consegui desenhar o filme da sua vida no
meu pensamento.
Senti que
tinha de ir, realmente, para o mundo deles, diluir-me neles e viver, ainda que
fosse uma noite apenas, as suas amarguras, frustrações e revoltas. Sempre tive
a noção que todas as emoções que viesse a sentir seriam efémeras. Lembrá-las-ia
para sempre, é certo, mas no meu regresso ao meu mundo, teria sempre um tecto
que me aguardava, uma banheira e água quente. Ainda assim, avancei.
À noite, nas trevas
Fomos
deambulando pelas ruas da baixa de Coimbra. A noite caíra e com ela uma neblina
gélida, húmida e fustigante. As ruas, mal iluminadas por umas lâmpadas de cor
âmbar, proveniente de um cansaço do tempo, iam ganhando um aspecto sinistro,
pardo, de elevado suspense, medonho. Aqui e ali, iam, carcaças debilitadas por
uma sorte rude e traiçoeira, encostando-se embrulhadas em papelão, desaparecendo
no seu interior, como ratos que se esquivam, após uma última olhada de vigia.
«Estamos sempre em alerta.», comentou,
continuando «Os mitras quando aparecem só
fazem asneira.». Foi num tom de lamento que me contou a história da “Ti
Alzira” , como carinhosamente a tratavam, uma senhora de setenta e poucos anos
que tombou após ter sido agredida numa noite de trevas, por um grupo de
organizado que, por vezes, espalha o terror nas ruas.
A manhã
surgiu e com ela os primeiros raios de sol, mais um dia sem tempo, pois esse já
parou no passado. Sentados na escadaria de pedra gasta e polida do acesso à
estação nova da cidade, eu e o Aurélio, em silêncio olhávamos a vida de mais um
dia a surgir, acariciados pelos primeiros raios de sol, uma ténue aragem e um
odor acre proveniente de um rio envelhecido e cansado. A meia-dúzia de metros,
estendido no chão, um estudante ébrio.
Num
impulso convidei-o a tomar um pequeno-almoço, comigo, ao que este recusou,
alegando que tal não era justo para os outros sem-abrigo da cidade.
Levantamo-nos
e despedimo-nos na promessa de um dia voltar a procura-lo. Quando atravessei a
arcada da porta de entrada do edifício da estação, olhei para trás e fiquei a
ver aquele homem que se afastava e que, para mim, representava a descrença num
estado social com futuro, sem certezas nos seus sonhos de um mundo melhor para
os sem-abrigo. Ficaram as últimas palavras que me dirigiu; «Se pudesse,
edificava uma estrutura que albergasse os sem-abrigo durante a noite e deles
cuidasse durante o dia…”, fez uma pausa, olhou o rio numa profundidade
arrepiante e concluiu «…mas isso custa tanto dinheiro e ninguém quer saber de
quem nada vale.».
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