Capítulo 1
Aqueles foram os dez metros de filme mais
longos que alguma vez vira. Armando Cebola, assim lhe chamavam, era Armando de
nome próprio e Cebola de alcunha que já vinha desde o tempo do seu tetravô paterno
e que não morreu no passar das gerações nem na natural, mas acentuada, evolução
do tempo e do espaço que atingiu a família na imensa epopeia que fizera seu avô,
e depois seu pai por terras do Ribatejo, na viagem dilacerante de sentimentos à
longínqua França ou dos anos que o calendário não determinou e que o relógio
não contou quando, seu pai, viveu ermidas na Serra da Estrela, fundido num
emaranhado de floresta silenciosa e muda, onde os pássaros calados eram
cúmplices do seu desassossego emocional.
Sabia que dez metros seriam, mais ou
menos, dez dos seus, a conseguir, longos e forçados passos. Aprendera-o na
escola com a professora Matilde, sem no entanto poder perceber realmente que
espaço era esse. O seu pai, António Manuel Pereira, conhecido pelo Tó Cebolas,
e sua mãe, Manuela Pereira, carinhosamente tratada pelos azinhaguenses e amigos
- muitas vezes dava consigo a pensar se realmente os tinha - como a Nelinha do
Cebolas, viam-no todos os dias, quando regressava da escola, no pátio da despretensiosa
casa a caminhar de um lado para o outro, apoiado no cajado que outrora
pertencera a seu avô, e a contar «um, dois, três… dez» e, virando-se numa
rotação perfeita de cento e oitenta graus, a reconquistar a passada e a
lengalenga da contagem. Assim permanecia, naquela ladainha de passos e metros
até à hora do jantar quando, sua mãe, o chamava para a mesa.
Durante a sagrada hora da refeição,
António e Manuela permaneciam num fúnebre silêncio, após as orações de
agradecimento por mais uma refeição, a um Deus a quem suplicavam por um milagre
da luz que salvasse o seu menino, apenas quebrado com a euforia de Armando que,
ou contava mais uma das suas imensas aventuras na escola, ou falava de mais um
dos seus sonhos prometidos; por vezes desejava ser médico, pois ouvia as
pessoas comentarem que esses senhores tratavam as pessoas das suas
enfermidades, ideia que o tinha deixado confuso após a vinda de Lisboa; outras
vezes agricultor e outras tantas vezes mecânico; por vezes apenas se limitava a
falar sobre o que aprendera naquele dia na escola e outras vezes, tantas, apenas se fixava, em monólogo, a fazer contas
de cabeça, em voz alta, sobre o número de passos, dez, que executava no quintal
e quantas séries tinha realizado. Uma vez que contava sempre os passos que
dava, desde que saía de casa, lá dizia com grande orgulho «De casa à escola são quatrocentos metros e da escola à mercearia da
senhora Francisca são cem metros». Algumas vezes, porém, os pais diziam-lhe
para não falar enquanto decorria a refeição, pois era pecado e o Senhor poderia
não gostar e a desgraça, a maior ainda do que a que já estava a acontecer lá em
casa, poderia aparecer.
Pensou, ao longo daqueles infindáveis dez
metros, que aquela e outras, seriam, certamente, as desgraças que tanto os seus
pais lhe falavam e, por momentos, lamentou ter falado tanto e tanto ao longo
das refeições e não ter seguido a orientação dos seus progenitores. «Poderia simplesmente ter rezado», cogitou.
Quando foram para Azinhaga viver,
António e Manuela domiciliaram uma pequena casa que era composta por um quarto
de nove metros quadrados, uma pequena sala que servia de lugar de convívio
familiar quando conversavam sobre a vida, as dificuldades que Armando iria
encontrar ao longo do seu caminho ou simplesmente rezavam os três, juntos,
antes de se deitarem e, de manhã, ao acordar.
Aquele espaço era utilizado também para
realizarem as suas refeições e de quarto para o Armando, dormindo no chão, em
cima de um colchão de palha de milho. O chão da pequena e humilde habitação era
de barro, tendo sobre ele uma lona velha que o almocreve lhes tinha cedido. As
paredes, em tijolo desnudado, transpiravam a chuva do inverno. Num espaço
contíguo, já no exterior, uma divisão servia de cozinha, onde um alguidar verde
tropa fazia de lava-loiças e duas pedras espaçadas entre si, serviam de apoio à
panela com que Manuela cozinhava, enquanto ardiam as pinhas e a lenha que
serviam de combustível. O frigorífico tinha um aspecto muito envelhecido e
comido por uma quantidade absurda de ferrugem. Era deveras pequeno e dava para
arrumar no seu interior, apenas, um pacote de leite, um pacote de manteiga,
algumas verduras e uns ovos, que as duas galinhas que passeavam pela horta de
três canteiros que tinham plantado na quinta - que lhes tinham gentilmente
oferecido - punham. Não havia electricidade e no tempo mais quente evitavam ter
produtos que se degradassem com essas condições. Também o chão da divisão era
em barro, nivelado pelo calcar dos pés de Manuela. Lavavam-se duas vezes por
semana, uma à quarta-feira e outra ao domingo antes de irem para a missa. Uma
pequena divisão de dois metros quadrados servia de casa de banho, onde um
penico era utilizado para fazer as necessidades. Também nessa casa de banho,
uma pequena bacia servia de lavatório. Aí colocavam um pouco de água e lavavam
as mãos e cara. Nos dias do banho, à vez, com ajuda de um regador, lavavam-se
de corpo inteiro com um sabão azul que compravam na carroça do almocreve, que
visitava Azinhaga uma vez por semana, nos dias de feira. Duas caixas de papelão
serviam de guarda-roupa para toda a família e era nessas caixas que os fatos de
veludo, negros com uns botões prateados, para irem ao domingo à missa, ficavam
religiosamente guardados, com duas mãos cheias de naftalina para que as traças
não comessem o tecido.
Armando nascera em casa com a ajuda de uma
vizinha da família a quem chamavam “Parteira Emília”. Emília era uma mulher com
pouco mais de metro e meio de altura, roliça, com cerca de setenta quilos, mãos
sapudas, dedos pequenos, mas com enorme sensibilidade. Tinha feito, em Azinhaga,
mais de trinta partos. Quando, apenas com doze anos de idade, seus pais a
colocaram num colégio em sistema de internato, em Santarém, gerido e com a
educação ministrada por freiras, Emília passou a ter uma educação muito rígida,
cheia de tempos de estudo e longos períodos de reza. Aprendeu que o tempo de
brincadeira acabara e que estaria a dar início a uma fase de aprendizagem de um
ofício. Seus pais desejavam que ela fosse uma senhora de referência em Azinhaga.
Aprendera a arte de enfermagem e viria a tornar-se uma enfermeira reconhecida.
Com quarenta e cinco anos de idade,
recorda-se, com carinho, do primeiro parto que fez, na tenra idade de dezasseis
anos quando, numa das idas a casa, por ocasião do Natal, na visita à casa de
dona Joaquina, a mulher do senhor Manuel da Farmácia, ajudou a parir o seu
primeiro filho, o Malaquias. Não foi um parto fácil, tendo a senhora Joaquina
perdido imenso sangue devido a uma hemorragia que quase a levava à morte. Já o
Malaquias, nasceu com o cordão umbilical enrolado à volta do pescoço e, não
fosse ali estar Emília, que aplicou todos os seus parcos conhecimentos
técnicos, à época, teria morrido asfixiado pelo garrote da natureza. Estiveram
quatro dias vai-não-vai, com Emília a tratar dos dois enquanto aguardavam a
chegada do médico que vinha de Santarém.
Chegou finalmente a Azinhaga, trazido pelo
Carlos padeiro, o médico, que fazia o caminho entre as localidades numa velha
carroça puxada por um cavalo que já mostrava o cansaço dos anos, dos montes, da
chuva, do sol, do calor e do frio no seu languido caminhar e no pêlo queimado
pelas amarguras de jornadas de trabalho. Normalmente a viagem entre Azinhaga e
Santarém demorava um dia inteiro, no entanto e devido ao rigor do inverno, com
um frio cortante e umas chuvas devastadoras, caminhos cortados, obrigando a
maiores voltas e paragens forçadas, o Carlos padeiro demorou dois dias para
cada lado.
Quando tinha seis anos de idade, Armando
foi com a mãe a Lisboa. Tinham informado Manuela que na capital havia um
curandeiro capaz de tratar da maleita do Armando. Foram na carroça do Carlos
padeiro até Santarém e aí compraram os bilhetes do comboio que os haveria de
levar até à estação de São Bento. Manuela havia andado duas vezes de comboio;
uma pela a ocasião da ida com o António para Beja e outra quando regressou ao
Ribatejo. Armando permanecia sentado naquele banco em madeira e, por vezes,
levantando suavemente a cabeça, inalava o odor a ferro e a ferodo. Era difícil
mantê-lo ali sossegado, uma vez que insistia em contar passos.
- Fica quieto Armando, olha que ainda cais
para a linha. – dizia-lhe a mãe, segurando-o pelo braço.
Estiveram na estação cinco intermináveis
horas a aguardar pelo comboio que vinha da Covilhã. Foram cinco horas que, para
Manuela, pareceram cinco dias e para Armando cinco anos. «Como era possível ter de ficar tanto tempo à espera do comboio, ali
sentado, sem poder contar passos?», pensava. Desejava explorar a estação
dos comboios, perceber como era feita, sentir os lugares, cada lugar. Mas tudo
o que a mãe o deixava fazer era ficar ali sentado à espera, a contar as suas
infinitas histórias.
Como já a haviam informado que teriam de
esperar pela chegada do comboio, Manuela levou um farnel dentro da sua bolsa;
algum pão, dois chouriços, um pedaço de queijo de cabra e uma garrafa de água
para matar a sede. António tinha-lhe dado cinquenta escudos para as despesas.
Em Lisboa, decidiu o casal, Manuela e Armando iriam dormir num quarto que
haveriam de alugar. O curandeiro que Manuela iria procurar, nada mais era do
que o Dr. Rui Malaquias, um oftalmologista muito conceituado que exercia
actividade no Hospital Stª. Maria.
Em
Azinhaga, as pessoas de maior humildade apelidavam os médicos de curandeiros,
uma vez que eles «curavam», como as gentes diziam, as maleitas. Ainda que a
dona Joaquina e o senhor Manuel da farmácia tivessem tentado explicar aos
habitantes mais rurais de Azinhaga, tal como já havia feito o Padre Fernando e
a enfermeira Emília, que curandeiros é coisa que não existe, e, quem ele se
dissesse ser, na verdade não passaria de um charlatão que se deseja aproveitar
da fraqueza das pessoas; os populares insistiam em chamar de curandeiro ao
médico que visitava o lugareijo.
O pároco defendia, como lhe competia, a fé
e a reza a Deus, «Ele, o todo-poderoso,
havia de ajudar a quem Nele confiasse e em suas mãos deposita toda a sua
esperança», dizia, acrescentando «E
se assim não for, então é porque o da maleita não é crente verdadeiro ou é um
enorme pecador que terá de viver com a sua heresia».
Todos os domingos, na missa da manhã, o Padre
Fernando proferia estas frases de modo muito incisivo, enquanto pelo meio da
multidão ia passando um cesto de verga onde os fiéis depositavam a sua dádiva,
sempre em nome da fé e debaixo de um olhar inquisidor, camuflado por uma
indumentária angelical de dois sacristães que iam, em surdina, proferindo «Em nome de Deus».
O padre Fernando, apesar dos estudos
teológicos e os conhecimentos científicos, defendia, em social, que a ciência
era, por vezes, um conjunto de incertezas profanas e invenções quase diabólicas,
assentes em conspirações com o único desígnio de desviar as pessoas do caminho
do Senhor. Emília, que apesar de ter estado sujeita a um ensino religioso,
aprendera a entender a ciência e a grandeza da medicina. Defendia a importância
do estudo dos casos e dos descobrimentos que os cientistas estudiosos haviam
efectuado sobre os meios de tratar doenças e a evolução dos medicamentos que
vão desenvolvendo.
Todos os dias Manuela e António Cebola
rezavam para que a maleita do seu filho desaparecesse e ele ficasse curado.
Sentia-se uma seguidora muito fiel da igreja cristã. Rezava todos os dias à Nossa
Senhora da Conceição, para que ela olhasse pelo seu Armando. Todos os domingos
ia à missa e em todas as missas dava uma moeda de cinco escudos, na passagem da
«cestinha do Senhor». Pensava tantas
e tantas vezes, com os olhos marejados em lágrimas, que tão grande pináculo teria praticado para que aquela desgraça tivesse alvejado o seu filho, como se
de uma cajadada fulminante, que acerta no cachaço de um coelho, se tratasse.
Fizera uma promessa. Iria à Cova D’Iria todos os anos, a pé, atear uma vela da
altura do Armando, se aquela maldita doença desaparecesse.
A viagem a Lisboa iria demorar cinco dias,
quatro deles em viagem, dois para cada lado. Ao longe, na curva da linha
férrea, surgiu a locomotiva preta, fumegante e a emitir uma apitadela avisadora
da sua aproximação. Na plataforma todos deram início a um ritual organizado e
ritmado, que parecia ter saído de uma academia militar. Pegaram nas suas cestas
de verga, umas transportadas sobre as cabeças de algumas mulheres, outras
agarradas pela força musculada dos homens e chegaram-se à frente, para junto da
extremidade da plataforma, quase num atropelo, agora, em tudo divergente da
anterior sintonia.
(continua)
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