O NASCIMENTO DE ARMANDO
Estava um dia solarengo e Manuela sentiu
que chegara a hora de parir. Chamou António, que andava a tratar das alfaces na
horta e pediu-lhe que chamasse a enfermeira Emília, pois a cria estava a
nascer.
António correu até à casa da enfermeira
que, em Azinhaga, também era parteira. Numa passada aligeirada e quase de
reboque lá chegou Emília a casa da família Pereira.
Manuela tinha preparado, já há algum
tempo, umas toalhas que não permitia que António utilizasse. «São para quando a cria nascer», dizia,
assim como umas roupas que a dona Joaquina lhe houvera oferecido. Quando
chegaram a casa, Manuela estava deitada e transpirava abundantemente. As dores
abdominais eram muitas e mantinham uma frequência ritmada. A respiração era a
de um canino cansado após uma correria. António chegou-lhe mesmo a perguntar se
ela queria um púcaro de água. Talvez estivesse com sede, pensou.
Emília mandou-o sair do quarto e aquecer
uma panela de água. Assim o fez. O tempo foi passando e dentro do quarto apenas
se mantinha Manuela, Emília, as toalhas lavadas e engomadas e uma vasilha com
água tépida. Escutaram-se alguns gritos e incentivos provenientes da parteira; «Força Manuela, força Manuela, tu és capaz».
Já tinham passado cerca de duas horas
quando António, que no pátio caminhava em círculo como um animal que se
encontra encarcerado, escutou o chorar de criança vindo do interior da casa.
Num pulo só, correu para junto da porta da casa e, com autorização e incentivo
de Emília, entrou. Quando chegou ao interior da divisão, viu um pequeno ser deitado,
já embrulhado numa toalha branca e que chorava como um bezerro desmamado.
Aproximou-se.
Espreitou o filho, a quem chamou de
imediato de «Armando», que era como se chamava o seu avô. Viu a enfermeira
Emília ajeitá-lo ao regaço de Manuela e, logo aí, percebeu que uma enorme
cumplicidade havia entre mãe e filho. Emília, que analisou o bebé, percebera
que fisicamente a criança acabada de nascer estaria bem de saúde. Incentivou o
homem a beijar o filho.
Mais tarde, alguns meses depois, acontecera
algo estranho. Como não era normal acontecer, Armando não reagia ao movimento
das mãos e parecia sentir-se perdido. Reagia apenas à voz, levantando
ligeiramente a cabeça, tentando perceber de onde viria.
Algo se passava.
Emília percebeu que Armando poderia sofrer
de problemas de visão. O tempo confirmara-o. Armando nascera cego. O doutor
Antunes, o médico de Santarém que visitava Azinhaga sempre que era chamado,
confirmara-o;
- O menino tem uma obstrução nos olhos.
Não consegue ver.
Manuela e António não se conformaram e
procuraram uma velha curandeira que vivia numa zona mais periférica de
Azinhaga. De tudo fizeram para que a visão do seu Armando chegasse. Manuela rezou
horas sem fim sobre indicação do Padre Fernando que sempre lhe dizia;
- É desígnio de Deus. E se Ele quis este
sacrifício, devem estar contentes por ter sido o vosso filho o escolhido. É uma bênção a escolha de Deus para transmitir aos terrenos o seu descontentamento.
Devem estar orgulhosos.
No
entanto, Manuela e António não aceitavam que o seu filho fosse o escolhido para
receber tal sofrimento e martírio.
Afagava-lhe o cabelo, Manuela, ao longo da
viagem quando Armando dormitava de cansaço num langoso balançar da carruagem.
Agora, ir à capital, era o fôlego de esperança que ela alimentara. Era crente,
sim era. Mas o seu Deus tinha escolhido o seu filho e ela necessitava que o seu
menino pudesse ver a luz do dia, as cores das coisas, o verde das árvores, o
azul do céu, o dourado dos prados ribatejanos quando o trigo está pronto para a
colheita; que saia da escuridão. O sol, aquele magnifico sol resplandecente.
Da extremidade do olho uma lágrima caiu,
após se ter formado numa enorme tranquilidade. Desejava que o seu menino
pudesse correr com as outras crianças em brincadeiras sem tempo. Agora, que
chegara o ano de Armando entrar na escola com os outros meninos da sua idade,
os pais do jovem temiam pelo pior.
Como Armando era cego, certamente não o
iriam aceitar no ensino. E se assim fosse, «Que
iria ser dele quando crescesse?» - indagava-se.
Havia de chegar o dia em que seus pais iriam,
pelo «Deus, todo-poderoso», partir para o além. Deixariam de cá estar para o
orientar. Manuela chorava em silêncio, num dilacerado coração em mil pedaços,
esquartejado por uma centena de emoções que lhe trespassavam o peito e a faziam
asfixiar. Tantas eram as vezes em que levava a mão ao peito numa aflição
mórbida de terror. Tentava encobrir esses sentimentos. Não queria que lhe
vissem a fraqueza.
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