sexta-feira, março 27, 2020

Ensaio sobre o amor - 6


O NASCIMENTO DE ARMANDO

Estava um dia solarengo e Manuela sentiu que chegara a hora de parir. Chamou António, que andava a tratar das alfaces na horta e pediu-lhe que chamasse a enfermeira Emília, pois a cria estava a nascer.
António correu até à casa da enfermeira que, em Azinhaga, também era parteira. Numa passada aligeirada e quase de reboque lá chegou Emília a casa da família Pereira.
Manuela tinha preparado, já há algum tempo, umas toalhas que não permitia que António utilizasse. «São para quando a cria nascer», dizia, assim como umas roupas que a dona Joaquina lhe houvera oferecido. Quando chegaram a casa, Manuela estava deitada e transpirava abundantemente. As dores abdominais eram muitas e mantinham uma frequência ritmada. A respiração era a de um canino cansado após uma correria. António chegou-lhe mesmo a perguntar se ela queria um púcaro de água. Talvez estivesse com sede, pensou.

Emília mandou-o sair do quarto e aquecer uma panela de água. Assim o fez. O tempo foi passando e dentro do quarto apenas se mantinha Manuela, Emília, as toalhas lavadas e engomadas e uma vasilha com água tépida. Escutaram-se alguns gritos e incentivos provenientes da parteira; «Força Manuela, força Manuela, tu és capaz».
Já tinham passado cerca de duas horas quando António, que no pátio caminhava em círculo como um animal que se encontra encarcerado, escutou o chorar de criança vindo do interior da casa. Num pulo só, correu para junto da porta da casa e, com autorização e incentivo de Emília, entrou. Quando chegou ao interior da divisão, viu um pequeno ser deitado, já embrulhado numa toalha branca e que chorava como um bezerro desmamado.
Aproximou-se.
Espreitou o filho, a quem chamou de imediato de «Armando», que era como se chamava o seu avô. Viu a enfermeira Emília ajeitá-lo ao regaço de Manuela e, logo aí, percebeu que uma enorme cumplicidade havia entre mãe e filho. Emília, que analisou o bebé, percebera que fisicamente a criança acabada de nascer estaria bem de saúde. Incentivou o homem a beijar o filho.

Mais tarde, alguns meses depois, acontecera algo estranho. Como não era normal acontecer, Armando não reagia ao movimento das mãos e parecia sentir-se perdido. Reagia apenas à voz, levantando ligeiramente a cabeça, tentando perceber de onde viria.
Algo se passava.
Emília percebeu que Armando poderia sofrer de problemas de visão. O tempo confirmara-o. Armando nascera cego. O doutor Antunes, o médico de Santarém que visitava Azinhaga sempre que era chamado, confirmara-o;
- O menino tem uma obstrução nos olhos. Não consegue ver.
 Manuela e António não se conformaram e procuraram uma velha curandeira que vivia numa zona mais periférica de Azinhaga. De tudo fizeram para que a visão do seu Armando chegasse. Manuela rezou horas sem fim sobre indicação do Padre Fernando que sempre lhe dizia;
- É desígnio de Deus. E se Ele quis este sacrifício, devem estar contentes por ter sido o vosso filho o escolhido. É uma bênção a escolha de Deus para transmitir aos terrenos o seu descontentamento. Devem estar orgulhosos.
 No entanto, Manuela e António não aceitavam que o seu filho fosse o escolhido para receber tal sofrimento e martírio.

Afagava-lhe o cabelo, Manuela, ao longo da viagem quando Armando dormitava de cansaço num langoso balançar da carruagem. Agora, ir à capital, era o fôlego de esperança que ela alimentara. Era crente, sim era. Mas o seu Deus tinha escolhido o seu filho e ela necessitava que o seu menino pudesse ver a luz do dia, as cores das coisas, o verde das árvores, o azul do céu, o dourado dos prados ribatejanos quando o trigo está pronto para a colheita; que saia da escuridão. O sol, aquele magnifico sol resplandecente.
Da extremidade do olho uma lágrima caiu, após se ter formado numa enorme tranquilidade. Desejava que o seu menino pudesse correr com as outras crianças em brincadeiras sem tempo. Agora, que chegara o ano de Armando entrar na escola com os outros meninos da sua idade, os pais do jovem temiam pelo pior.
Como Armando era cego, certamente não o iriam aceitar no ensino. E se assim fosse, «Que iria ser dele quando crescesse?» - indagava-se.
 Havia de chegar o dia em que seus pais iriam, pelo «Deus, todo-poderoso», partir para o além. Deixariam de cá estar para o orientar. Manuela chorava em silêncio, num dilacerado coração em mil pedaços, esquartejado por uma centena de emoções que lhe trespassavam o peito e a faziam asfixiar. Tantas eram as vezes em que levava a mão ao peito numa aflição mórbida de terror. Tentava encobrir esses sentimentos. Não queria que lhe vissem a fraqueza.

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